terça-feira, 20 de setembro de 2011

Estudo sobre Werner Jaeger



      O culturalismo oligárquico: um estudo sobre Werner Jaeger

                                        Eliane Colchete
    
         espaço do blog reutilizado; texto escrito em 2017, postado em 2019; este blog é oferecido ao público em geral, porém de conteúdo adulto, com nível informacional de doutorado em matérias de ciências humanas, porém veiculando minha criação independente, não subsumida a qualquer intervenção de outros, ou instituição de julgamento além da conformidade à lei de liberdade de expressão vigente no Brasil. 
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              Rostovtzeff (“História da Grécia”Rio de Janeiro, Zahar, 1983),  cuidou do que poderiam ser os aspectos materiais da guerra do Peloponeso, naquilo em que puderam deflagrar o confronto. 
               Havia assim uma questão puramente circunstancial, a disputa pelo controle do comércio com a Itália. O pivô da guerra do Peloponeso foi a necessidade da decisão espartana a propósito da aliança que Corcira, “uma abastada colônia de Corinto e a ponte natural entre a Grécia e o Ocidente”, declarou ser sua intenção afirmar com Atenas.  Mas isso implicaria retirar de Corinto a “última oportunidade para represar o fluxo do comércio ateniense para o Ocidente”, e de fato transferir “o controle da rota comercial ocidental, que era dirigida pelos portos da Corcira, para as mãos de Atenas, porque a presença da frota ateniense naqueles portos passaria para Atenas todo o comércio italiano e siciliano”.
             Por outro lado, havia a questão da península Calcídica, que Atenas poderia controlar completamente se superasse a resistência de Potidéia. Mas Rostovtzeff não explora suficientemente os motivos pelos quais a decisão de Sparta não equacionou as vantagens que ele mesmo reporta, a propósito da supremacia ateniense na Grécia: “Por mais egoísta que pudesse ser” a política ateniense tornou o mar garantido para os comerciantes e concedia vantagens aos seus aliados em sua predominância comercial.
               A decisão espartana pela guerra nem era de fato muito segura quanto às chances de vitória. Ao cabo da guerra, Sparta devolveu as cidades gregas da Ásia Menor, que Atenas havia libertado, à sua aliada, a Pérsia. Até a vitória de Tebas contra a vencedora dos atenienses, a oligarquia estava restaurada na Grécia inteira, pelo domínio dos espartanos. A vitória de Tebas assinalou-se num quadro em que o anseio pela autonomia já alcançava os persas eles mesmos, segundo Rostovtzeff. Na subsequência dos fatos, porém, o mundo antigo permaneceu sob o antigo regime, como se sabe sobejamente. 
             Mas se a questão do regime mostra-se assim preponderante para uma história que não quisesse fragmentar-se numa multidão de fatos comezinhos, vemos que ela alcança magnitude considerável na reversão de qualquer pressuposto da “Grécia” como mero reflexo das liberdades democráticas e conquistas do espírito ateniense. 
             Jaeger define pois, nada menos que o platonismo nessa reconceituação geopolítica dos estudos gregos. Se não foi o que de fato marcou época na recepção da grande obra jaegeriana, o presente da Globalização imperialista como horizonte futuro das obras de Jaeger e Snell é bastante irredutível  à trajetória que elas, em sequência, puderam comunicar, desde a aposta dos anos trinta na supremacia oligárquica ilustrada até a confiança no liberalismo burguês do pós-guerras. Otimismo que poderia explicar a oclusão da temática principal do grecismo jaegeriano na recepção historiadora, mas se examinarmos bem o sentido do grecismo de Snell, assim como também da escola francesa estrutural como em Detienne, Vernant e outros, vemos que o liberalismo burguês e a oligarquia ilustrada mostram-se bem aparentados. A permanência da mentalidade do regime aristocrático na Grécia da Polis é o motivo, questionável a meu ver, que conservam porém todos esses referenciais. 


II
               O estudo genealógico de Sparta, como força constante do impulso civilizatório complexo que abrange a heterogeneidade histórica enfeixada na rubrica do “Ocidente”, como se pode perfazer a partir da orientação original de Jaeger na "Paidéia" (São Paulo, Martins Fontes, 1994), é algo inverso a qualquer impressão inicial de resumir-se à fácil reconstituição da influência da ideologia da força bruta. Isso equivaleria a instituir o desenvolvimento dos estudos na dependência de um esquema de dicotomia simples, assim a história de Sparta sendo paralela e diferente da história das cidades gregas harmonizáveis com o modelo ateniense. 
          Mas o que a leitura mais atenta constata é que o estabelecimento mesmo do modelo na exemplaridade histórico-cultural ateniense está interligado ao enigma espartano. Uma vez que se trata de compreender, inicialmente, a transição do mito à laicização da cultura, filosófica, científica e estética, transição esta que tem no apogeu ateniense a completa realização, o significado do mito precisa estar bem conceituado, mas nele o que se visa apreender habitualmente é a unidade helênica, do regime anterior à Polis e posterior ao império micênico.
              O regime arcaico é assim, por um lado, já “helênico”, composto consequente à invasão e fixação do ramo dório, cujo tipo concentra-se em Sparta, enquanto o jônio se estabelece em Atenas e Ásia Menor, com o eólio em porções específicas mais ao norte. Estes ramos são qualificados na história cultural. Em Jaeger, história que sabe combinar de modo mágico os aspectos inteiramente antitéticos da ruptura mais radical e da continuidade inquebrantável à origem homérica. A lírica eólia é o componente inicial pós-aristocrático, a filosofia e a liberdade política jônias são como que a consequência. O que cabe a Sparta?  
           Jaeger se destaca assim como praticamente o único referencial que o reconstitui e integra na história cultural subsequente. Resulta uma ironia sem igual a sua renúncia a considerar as escolas pós-platônicas elementos inerentes à Paideia grega. De fato ele é o único que explica, por essa inclusão de Sparta, a subsequência ao século clássico do apogeu ateniense. 
 O platonismo, que dela é a consequência manifesta.
              E, quanto ao conteúdo recalcado das escolas helenistas, como plenitude da transformação religiosa da Fortuna, que aprendemos alhures à exemplo de Bréhier, já estão delineadas como frutos do que a democracia pôde produzir, desde Eurípides.            
             Aliás, aqui seria oportuno aprofundar o contraponto de Jaeger e Snell, destacando que ao contrário deste em "A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu" ( São Paulo, Perspectiva, 2009), Jaeger na "Paidéia" estabelece em Eurípides, inversamente a Calímaco, a influência futura da Grécia Antiga. Se Eurípides é “o compêndio da individualidade moderna”, seria importante agora precisar em que sentido Jaeger assim vaticina: "descobrimos na sua arte um surpreendente pressentimento do futuro. Vimos que as forças que colaboram na formação do seu estilo são as mesmas que formarão as centúrias seguintes: a sociedade burguesa (mais no sentido social do que político), a retórica e a filosofia.” Mas é nesse ponto, onde Jaeger constitui um pórtico ao mais alto elogio que já se fez a algum ser humano, este que logo trataremos de referenciar, que ele institui o que poderia ser o ponto de transição para aquele outro entorno, relativamente a Atenas clássica, que é porém não o duvidoso cosmopolitismo helenista, e sim Sparta como a intimidade real da Grécia.
            O pórtico, pois, antes do elogio. De fato, na vocação futurista de Eurípides reside algo além a toda positividade daquilo que tem seguimento após si. As forças do seu estilo, “instilam no mito o seu hálito", que porém Jaeger define desmitificador. (p. 412) É nesse ponto exato, inversamente à filosofia ou à mudança do regime,  que o mito deixa de ser a unidade compositiva do espírito grego, segundo Jaeger. Assim todo o peso da crítica contra Eurípides, acumulado pelos defensores do mito como da tradição grega, deixam de ter importância. Eurípides é o introdutor de um novo mundo, o helenismo e a modernidade – mas assim tautologicamente já não um mundo somente grego. 
                O paradoxo histórico aí construído é notável. Se Eurípides é o dramaturgo por antonomásia, o que teria sido para a reconstituição histórico-social e cultural da Grécia, a civilização ateniense, como culminância da Polis, que pelo espírito do teatro se constituiu e aí se reunia – uma vez que a culminância dessa realização é ao contrário, a ultrapassagem definitiva da fronteira geopolítica? O elogio, agora. “O prejuízo causado por Eurípides ao teatro ateniense é compensado por sua incalculável ação sobre os séculos seguintes. Foi para eles o trágico por antonomásia, e foi principalmente para ele que se construíram os magníficos teatros de pedra que ainda hoje admiramos como monumentos da cultura helenística”. 
           Todo o teatro deste mundo, helenístico e moderno, é pois um único monumento a Eurípides. Que elogio a um poeta poderia sobrepujar este? Porém, como numa peça barroca, tecido sobre um fundo de derrisão. Não só se trata de um trabalho do negativo. Não é só o negativizado, o teatro ateniense, o mito, aquilo que está em causa. Isso seria trivial, num percurso de laicização e cientificização das mentalidades. Ocorre aí uma passagem ao limite, é todo o percurso da laicização e cientificização que se devota ironizado como o referencial ateniense. O helenismo não é, definitivamente, a continuação da cultura grega. Mas por que a própria cultura grega não se confunde com o que continua como o teatro de Eurípides, no helenismo. Que referência ao fato de Eurípides ser grego, poderia restar compreensível?
            Se as contribuições eólia e jônica se complementam assim numa suprema ironia da história, o deslocamento relativamente à Grécia é realizado – como só poderia ser – pela resolução do enigma espartano. Na Grécia, o desenvolvimento da questão do trânsito do mito religioso à cultura humanística abrange um fator de mudança e um fator de conservação. 
             O regime arcaico é por um lado, já “helênico”, repetindo, composto consequente à invasão e fixação do ramo dório, cujo tipo concentra-se em Sparta. Mas também, sendo um regime não diferenciado apenas pelo único fator de peculiaridade destacável na História Antiga, a Polis letrada e democrática, resta o fato do regime teocentrado grego não se deixar confundir com a realeza típica dos grandes impérios ou mesmo pequenos reinos fortemente centralizados, pois, se fosse facilmente confundível, não haveria propósito na questão acerca dos elementos transicionais do mito ao pensamento humano. Teria havido apenas uma ruptura total, não podendo-se configurar a mesma rubrica do povo grego, mesmo preservada a heterogeneidde dos seus fatores constitutivos, como Sparta e Atenas.
               Assim, entre os fatores de ruptura e permanência que integram a questão possível da transição devido à peculiaridade do feudalismo aqueu e homérico, a organização do Estado espartano desde a formação da sua Polis deveria oferecer a extração mais genuína da instância da permanência. O referencial da mudança se compreenderá porém relacionado ao substrato, ao “que” muda, terá elementos novos mas moldados pela conformação da origem, e, quanto a esta, onde não ocorreu mudança alguma se poderia considerar o substrato. Ainda assim, essa dicotomia simples é apenas um erro crasso. Sparta é uma Polis, portanto sua formação é exemplar da ruptura para com o “sistema de governo tipo clã”, na expressão de Rostovtzeff, (op. cit. p. 89) típico do período das invasões dórias e fixação pós-micênica, em que já havia a descontinuidade étnica mas conservando-se o panteão homérico atribuído aqueu. 
           Na atualidade a questão da descontinuidade ou identidade cultural entre o império micênico aqueu do segundo milênio e os povos helênicos oriundos das invasões dórias que começam em 1200 ac. e instauram a sociedade grega, já não se limita à prova da memória.

        A tese da descontinuidade se garante a princípio pelo mero fato da escrita aqueia, o linear b, que está hoje decifrado, não ter se conservado na Grécia. A Idade do bronze micênica foi derrotada pelos dórios da Idade do Ferro, mas estes eram analfabetos e contrariamente a outros exemplos – como os próprios aqueus que antes assimilaram adaptando o letramento cretense, o linear a,  ainda não decifrado - não quiseram ou não puderam assimilar o que encontraram já feito, limitando-se a destruir a civilização anterior.

      Mas a hipótese da continuidade cultural se baseia no fato igualmente conspícuo da cultura arcaica ser a que Homero compilou literariamente atribuindo-se como a memória dos aqueus. E a compilação homérica basear-se na mitologia e lendas que realmente eram o substrato da cultura grega aristocrática arcaica.

      Assim até aqui a questão se limitava a poder-se ou não demonstrar se o Homero helênico, reproduzindo na aventura atribuída aos aqueus apenas os traços da sociedade arcaica grega, conservou no entanto realmente uma memória oral do passado micênico. A prova integraria o achamento de Troia e Micenas, e estaria dependendo dos elementos da interpretação desses sítios arqueológicos. 

      Hoje sabemos porém que o panteão homérico reflete constantes culturais do entorno geopolítico da Grécia arcaica, o que ficou esclarecido sem dúvida pelas similaridades com o que se descobriu recentemente a propósito dos Hititas. Uma circunstância parecida com o fato de que na reconstituição homérica da guerra de Troia, tanto os ilhéus troianos como os aqueus de Micenas cultuavam os mesmos deuses, pelos mesmos rituais. 

      Contudo aquilo que aqui estamos posicionando como o que se poderia doravante designar a “questão Sparta”, conforme o que Jaeger possibilitou articular numa obra que ainda não está totalmente assimilada como podemos assim constatar, não se deixa minimizar só por isso. Pois Sparta construiu materialmente a ideologia da continuidade helênico- aqueia, tornou Homero um mero apoio a uma autêntica “ciência” genealógica, fabricada como linhagens de heróis preservadas de um mundo ao outro, de Micenas a Sparta, como porém uma mesma história cultural, étnica e territorial, conforme a tradição da localidade espartana ser a mesma dos aqueus que guerrearam contra Troia.  

            Nesse novo momento, em que a Polis é configurada, ela não põe a questão da mudança única, do sistema de mentalidade teocentrada em que o clã se organizara à Polis dos cidadãos que juntos e por igual “organizam a vida política, econômica, social e religiosa de toda a comunidade”. Na Polis a religião antiga não está esquecida, mas a organização é civil, as leis são feitas pelos seres humanos em processos representativos e deliberativos que devem garantir essa proveniência como da união da cidadania. Mas a questão se torna, pois, a princípio, a peculiaridade dos regimes políticos, uma vez que a Cidade-Estado é bem oposta, nas suas características, entre os extremos espartano e ateniense. 
              O que precipita a transição do regime de mentalidade teocentrada do clã à Cidade-Estado, tanto responde a um como a outro efeito. Além disso, se o máximo interesse na problemática da transformação do regime do clã à Polis, é o que importa à emergência do pensamento letrado que se realiza tipicamente na Jônia e Atenas, está claro que esse é o efeito que se considera grego por excelência, não obstante isto estar longe da verdade histórica que Jaeger parece ter sido o pioneiro a propor resgatar não apenas na história dos fatos, mas por igual na história da cultura.
             Mas como vimos, e vale a pena repetir nesse contexto em que se trata da história cultural cum Sparta, a Grécia só se configura unicamente após a invasão “dória” - por metonímia. Ela não é micênica, e, no entanto, a cultura religiosa do período de mentalidade teocentrada do clã é a homérica, inspirada e modelada por Micenas, tendo a Guerra de Troia como o motivo da aglutinação dos temas míticos que se desdobram na vida dos templos, em ritos cujas funções variadas abrangem também funções de tribunal e governo, e conhecimento sacerdotal que inclui as funções do Rei, restrito a senhor patriarca do clã. Ora, a tradição que assim foi origem desse produto bem irredutível que é a cultura humanística ateniense e sofística, institui um percurso na mutação. Entre a origem e o produto final filosófico e científico jônio/ateniense, o único fator interveniente que se pode assinalar é não-grego, a influência oriental, que está na base da eclosão das seitas iniciáticas e êxtases populares, assim como a noção de alma e karma, todos estes elementos influentes na época inicial da filosofia. A base “grega” da mutação que produziu a ciência seria, pois, uma fusão típica, homérico-micênica e oriental, especialmente mesopotâmica e egípcia.
            Mais uma vez, sentimos a complexidade dos termos de que se constitui a questão da emergência do pensamento na história. Mas vemos como o problema se torna mais complexo ainda, se a evolução paralela e independente do clã homérico à Polis espartana, surpreende nisso pelo que o substrato da transformação do mito em razão humanística, lá não subsiste. Ao que parece, a fusão não é o acontecimento localizado em Sparta, mas sim a opção pela pureza das origens homérico-micênicas. Se o Oriente por si só não conheceu o mesmo desenvolvimento científico e político da Grécia, não obstante a filosofia na China, o budismo na Índia, e conhecimentos efetivos em tantos lugares que não resultam porém numa sistemática de mentalidade, há motivos para sustentar que só a definida fusão foi o meio dos acontecimentos na Grécia. Sparta é pois a contraprova, no sentido contrário à prova do purismo oriental, a do purismo homérico-micênico.
             O que o Hipias Maior exemplifica, lembrando que se ele testemunha que os espartanos só se interessam por história, e nada por qualquer fator de letramento, de fato ele especifica que não é a de Heródoto, mas as genealogias homéricas. Se os espartanos, ao contrário dos demais gregos, não se interessam pelas lições letradas de Hipias, de modo que este só ganha bom dinheiro nas cidades não espartanas, se mantem bem recebido pelos espartanos apenas porque se esmerou na composição das narrativas genealógicas. 
      Simpaticamente Hipias confidencia a Sócrates sobre suas incursões nesse mister, com o fito de agradar ao público espartano, sobranceira ou ingenuamente ignorando o motejo socrático sobre o fato dos espartanos gostarem e se servirem dele “como crianças que se servem de velhas, ou seja, para lhes contar histórias agradavelmente”, ou talvez supondo que o motejo se dirige aos espartanos e não a si. 
              Em todo caso, Hipias responde: “Sim, e por Zeus, Sócrates, recentemente causei grande impressão lá com a narrativa de atividades nobres que os jovens deveriam realizar. De fato, disponho de um belo discurso composto com esse tema, com um bom arranjo tanto verbal quanto em outros aspectos. Seu cenário e ponto de partida é mais ou menos o seguinte: após a queda de Troia, conta-se que Neptolemo indagou a Nestor quais eram as nobres atividades, aquelas que conferiam para quem as realizasse enquanto jovem o máximo de renome, na sequência vemos Nestor falando e sugerindo a ele muitíssimas atividades lícitas e nobilíssimas” (286 b).
           Nessa altura da História real, ao mesmo tempo que a particularidade de Sparta está sendo ressaltada, também está sendo solvida, pois Hipias informa que o mister que desenvolveu unicamente para atendê-la irá servir também a Atenas, onde ele iria repetir a apresentação daí há dois dias, “na sala de aula de Fidostrato”. Isso por solicitação dos que o hospedavam, provavelmente já tendo tido notícias do sucesso em Sparta. Logo o sofista está instando com Sócrates que assista, trazendo “outros que sejam capazes de avaliar discursos que ouvem”. (286 c)
             O substrato da transformação do mito em pensamento humano, se não tem relação com Sparta, se define pelas atividades intelectuais. Homero não é filósofo, mas a religião naturalística e o mito escrito, assim que o renascimento comercial permitiu a reintrodução da escrita adaptada da Fenícia, formam uma continuidade que supre a transformação subsequente. Em Sparta, segundo Ellauri e Baridon (“História Universal, Grécia”, Buenos Aires, Kapeluz, 1958, p. 76), a aportação dos dórios iletrados se concentrou à parte da continuidade que havia sido possível, por meio oral ritualístico de que Homero é o testemunho registrado, da cultura letrada micênica. É assim algo irônico que o elemento genuinamente grego, se os gregos são pós-micênicos, exemplifica-se por um “tipo de vida, sencilla y rustica" que contrasta com o estilo palaciano micênico que por Homero, e depois, Hesíodo e os mitógrafos orientalizados como Orfeu, constituiu o substrato da continuidade na “Grecia central y en las islas” onde “se mantuvieron elementos de la cultura miceniana”.
            Aquele novo tipo de vida que vinha ter lugar onde a penetração dória foi mais concentrada, como o Peloponeso e especialmente em Sparta, não conhecia escrita nem indústria adiantada, mas cultivava virtudes que Ellauri e Baridon consideram a contribuição estimável dos dórios à vida grega: o sentido do dever, a noção de disciplina e o respeito ao passado. Esses foram, ao ver dos autores, “ingredientes de importância em la posterior civilización de los helenos”.
             Vemos os dórios assim numa situação antropológica peculiar. Verdadeiros “gregos”, como ramo dório, o epônimo da aportação étnica “helênica”, típicos representantes da Idade do Ferro, porém numa trajetória à parte de toda a cultura originária da Europa enquanto locus de ciências, letras e legalidade constituída tal como responde pela evolução do étimo “político”, vindo da Polis. A “Grécia” característica, pois, como em Jaeger, menos “grega” quanto à formação antropológica estrita do que a Sparta rústica, guerreira e iletrada, que tipifica a vanguarda pós-micênica dos invasores “helenos”. E que, contudo, é o único referencial que reclama como seu senso de patriotismo a continuidade estrita ao mundo micênico, recusando as aportações internacionais de cultura típicas na Jônia e na Ática, não obstante cultivando um modo de vida rústico e interiorano que os micênicos, sofisticados reinos de comerciantes ultramarinos, jamais praticaram. 
          Essa irônica situação efetiva é deslocada na ideologia pan-helênica que, ela, se nunca recobriu uma realidade nacional real, unificada, subsiste sempre como a referência dos “gregos” como “povo”. O deslocamento inclusivo da trajetória de fixação dória, tão peculiar na vida grega, mas tão bem integrada nela da perspectiva geopolítica, se faz como vimos numa relação estreita com a circunstância da identidade territorial. Assim vemos na composição de Rostovtzeff: “Esparta forma o centro natural da Lacônia, o vale do Eurotas. Pouco sabemos do começo da sua história. Na era greco-egéia, a Lacônia contava-se entre os mais poderosos reinos do Peloponeso. Na época da Guerra de Troia, era governada pelo 'louro' Menelau e pela 'bela' Helena, sua mulher, que, segundo Homero, foi causa da guerra..."
 (op. cit. p. 91) 
           Coincidentemente os dórios são o ramo dos gregos louros. E essa instigação territorial misto de fenotípica, é a que se utilizou efetivamente para construir a ideologia pan-helênica, como vemos em Jaeger.  Ele informa assim que a migração dórica e sua fixação foi o derradeiro dentre os movimentos de povos que penetraram no território vindos possivelmente da Europa Central, e que misturando-se com “os povoadores de outras raças mediterrâneas ali fixadas primitivamente”, constituíram “o povo grego que a história apresenta”. Mas, em seguida, notando que “o tipo característico dos invasores conservou em Esparta a sua maior pureza”, aduz: “A raça dórica ofereceu a Píndaro o seu ideal de homem loiro, de alta estirpe, tal como era representado não só o Menelau Homérico, mas também o herói Aquiles, e em geral, todos os 'Helenos de loira cabeleira' da Antiguidade heroica”. (op. cit. p. 111)
             A diferença rasurada, a integração ideológica de Sparta num mundo grego antropologicamente homogêneo, por uma via não redutível ao que Homero já havia feito ou exemplificado, sutura a brecha na tradição micênico-grega, pelo contributo dessa evidência de continuidade de aparência e lugar. Em Jaeger a acomodação em ato parece espraiar o rumor da fricção dos seus materiais, a guerra de conquista, a permanência do lugar, dado que o segundo ocupa pesadamente os desvãos abertos pelo primeiro, até a ideia mesma do que veio a ser instituído. A saber, o “nomos”, a lei civil, o direito como a qualificação “grega” da mentalidade, que Jaeger cuida delimitar inicialmente em torno desse fato de História que é a Polis, aquilo que, no seio da vida dos povos, “representa um princípio novo, uma forma mais firme”, mais perfeita, “da vida social, de significado muito maior que nenhuma outra para os gregos”. 
              Assim, “é na Polis que se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida social e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura.” (p. 106, 107) Isso permite lidar com todas as particularidades da antropologia grega como integrantes de um único todo, a vida comunitária organizada na forma da Polis.
             Na qualificação grega do “nomos” ou lei civil como força regente do Estado grego, a Polis entretanto autônoma em vez de apenas integrante de um império unificado vemos, pois, ainda o fragor da construção em ato daquela unidade antropológica a partir de materiais heterogêneos, a que assistimos não só assim fazer-se de rupturas, como não se furtar a singularidade da Polis espartana. Jaeger expressa que tampouco Sparta tem qualquer similaridade com o que “os gregos costumam entender por legislação”, sendo bem “o contrário”, como conservação do “caráter autoritário da vida pública”. 
              Mas nesse mesmo trecho Jaeger reconsidera. Se “não é uma compilação de leis particularizadas, civis e públicas” como nas cidades gregas usualmente, é sim “o nomos, no sentido original da palavra...”. (p. 112) Como lei oral tradicionalmente válida, Jaeger entende pois um sentido original do Nomos na Grécia, e este é mais um ponto na sutura ideológica, visto que se há um sentido “grego” original – na acepção de único e peculiar – não poderia ser este, que pelo contrário é comum nas sociedades ditas ágrafas. Seria falso considerar que nos Impérios Antigos, que ao contrário da Grécia nunca tiveram democracia, deixando-se de lado a questão recente do Sumer, não houvesse lei escrita, mas a concepção de sua fonte é o decisivo nesse caso, e só na Polis ateniense ela foi atribuída ao conjunto dos cidadãos, em vez de a personagens cujo sacerdócio misto de realeza facultava atribuí-la à ordenação oral dos deuses. As leis de Sparta que foram efetivamente escritas tem ainda o caráter dessa fonte, conforme Ellauri e Baridon: "Segundo a lenda, Licurgo”, que era da família real, “depois de ter viajado pelo Oriente, consultou em seu regresso o oráculo de Delfos e Apolo assinalou a ele as reformas que devia introduzir no Estado Espartano”. Licurgo teria recomendado a instrução para que não fossem modificadas sequer numa vírgula quando estivesse ausente, mas assim abandonou Sparta em seguida, definitivamente.
            Na concepção de Ellauri e Baridon, essa lenda não deve corresponder aos fatos: “As instituições espartanas não foram obra de um homem, nem se criaram num único ato”. (op. cit. p. 77) Jaeger considera, ao contrário deles, que não são obra posterior, entre a fixação territorial e a consolidação do seu jugo despótico sobre a Messênia, paralelamente à subjugação dos outros povos próximos por via de tratados na forma de ligas. Mas sim “a sequência de um estado antiquíssimo da civilização dórica”. (op. cit. p. 111) 
                A biografia de Licurgo por Plutarco, Jaeger considera mais que simples fábula, mas sim, do mesmo modo que o texto de Xenofonte, “A Constituição Lacedemônia”, fruto de exageros românticos em consequência da situação de Sparta como antítese providencial ao que estava sendo radicalmente rejeitado e criticado como regime democrático ateniense e sua “moderna cultura do séc. IV”. (p. 109)
             Junto com as elaborações de Platão, Esparta emerge como “a influência aristocrática da filosofia ática”, assim não o contrário exterior, mas um dos “tipos” que “ se juntam na Atenas dos séculos V e IV”. Ao lado destes, o terceiro que compõe a “multiplicidade de formas” cuja composição “tanto na agudeza de sua oposição como na harmonia que, em última instância, as supera e as irmana”, na Grécia é Homero, que Jaeger atribui “uma totalidade unitária de dialetos eólios” em cantos inteiros, de modo que a presença de outros dialetos na letra homérica não basta para desqualificar a atribuição dessa proveniência.            
          Mas qual o interesse de mesclar Sparta ao “milagre grego' como se atribui, no interregno que desde o século VII abrange a emergência de cultura laicizada e democracia, dos jônios em geral e Atenas ática em particular? Sem dúvida tornar a unir o que antes foi separado por Jaeger no interesse mesmo de tratar Sparta como um fenômeno conceituável na perspectiva da história cultural. Primeiro, pois, a segregação, a antítese: “A Pólis é o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega. Situa-se por isso no centro de todas as considerações históricas. Renunciaríamos de antemão a compreender a história dos gregos se, em conformidade com as divisões habituais do assunto, deixássemos o Estado aos historiadores 'políticos' e aos investigadores do direito público e nos limitássemos ao conteúdo da vida espiritual”.
             A Polis, pois, é o centro, podemos estudar a cultura alemã sem a política do Estado alemão, porém não assim com os gregos. (p. 106, 107) A Polis espartana e seu estudo, que só pode ser limitado ao regime estatal, posto que a cultura letrada só se desenvolve tendo sido reprimida pelo açambarcamento das forças ao militarismo, não se limita, pois, assim mesmo. Tratando-se da Grécia, a nação é o espírito e vice-versa. Em seguida – aqui, sim – a Reentry: “Enquanto a vida real do Estado ateniense recebe o influxo decisivo do ideal jônico, na esfera espiritual... vive a ideia espartana de uma regeneração que, no ideal platônico da formação, funde-se numa unidade superior com a ideia fundamental jônico-ática",  porém, já não tipificada no regime democrático, "de um estado regido pelo direito”. (p. 108)
           À parte a questão momentosa da filosofia platônica como intenção regeneradora subentendendo assim uma pureza original que Sparta encarna, mas que Platão não poderia transmitir como ideia fora da democracia, onde a filosofia somente viceja, e à parte a fronteira de filosofia e política real, que o processo contra Sócrates expressou historicamente, é imperativo o exame desses conceitos de direito e Estado jaegerianos. Eles muito tem a ver com críticas da interiorização da lei na democracia contemporânea, que no fundo são críticas de fundo monarquista, como a de Foucault – que considerava o antigo regime colonialista mais brando quanto à extensão das penalidades, sendo porém o oposto quanto ao modo de as cumprir, supondo equivocadamente tolerante com os pobres e os vagantes. A propósito, em “A Evolução do Capitalismo” Dobb desfaz essa falácia foucaultiana, mostrando como o império era na verdade um veículo da opressão capitalista sobre os pobres, com leis que obrigavam a vagar por proibir casas com muitas pessoas no campo, mas também leis que prendiam como bandidos e puniam barbaramente, permitindo a escravização, os vagantes - taxados vadios.
            A princípio, quanto a Jaeger, não se verifica que o Estado tenha aparecido “pela primeira vez” na Polis grega.  Já ressaltamos que hoje nem consideramos terem sido os gregos pioneiros quanto à democracia, mas se o que Jaeger privilegia em termos desse “Estado” é apenas “a ideia fundamental jônico-ática de um Estado regido pelo direito”, a “ideia espartana de uma regeneração” sugere a pergunta. Regeneração de que? Não é do direito, pois este é a ideia jônico-ática. A proposição parece estranha, pois a regeneração só poderia ser de um Estado não-democrático, porém não há direito, propriamente falando, sem democracia, não obstante haver leis autoritárias e instância pública de sua formulação e observância - o que não seria originariamente grego. O que Foucault e outros não percebem, como o erro fundamental de que partiram, é o mesmo que aí Jaeger parece praticar. Ao contrário da antítese que ele colocou, fora da democracia não há “direito” na acepção de “legalidade” porque esta é a adequação dos enunciados a um princípio formulado como tal.
          A legalidade como esse princípio em função do qual as questões podem ser julgadas, é, pois, a isonomia dos sujeitos da observância legal. O princípio é pois o contrário de uma ordem simplesmente instituída a partir de uma instância acima da função referencial. Não há sociedade ou instância que a personifique acima dos sujeitos que a compõe como sujeitos do conhecimento dos vínculos que os inter-relacionam, do ponto de vista da legalidade, conhecimento cujo conteúdo é o que os sujeitos decidem – do contrário o que há não é legalidade, é arbítrio que como Piaget estudou, tipifica a mentalidade infantil.
                Se permanece questionável a subordinação de conteúdo, entre conhecimentos científicos e maturidade do juízo legal, que Piaget afirma, vemos porém já na origem da Polis democrática não ser questionável o vínculo formal, pois se trata de um conhecimento objetivo necessário dos princípios legais- constitucionais de que se podem haurir os critérios para definição de juízos efetivos na conduta pública. E a isonomia torna os princípios matéria de conhecimento objetivo, que difere de obediência a qualquer.
           Sem dúvida Jaeger se utiliza dessa noção de legalidade para o seu situamento da Polis grega. Porém esquece, em seguida, que “Polis” nunca será sinônimo de isonomia, se, como em Sparta, o que define o status do cidadão não é apenas a igualdade definida da cidadania, mas a diferença do poder que dispõe o cidadão como senhor de classes outras, ao mesmo tempo definidas na abrangência da Polis e excludentes do direito isonômico. 
             Todos estamos bem conscientes de que Atenas conservou a escravidão e comportava estrangeiros residentes porém não cidadãos, mas a questão é que a cidadania ateniense se delimita pelo princípio da legalidade, a igualdade perante a lei, ao contrário da definição espartana do cidadão como agente da conquista potencial ou atual de outros povos ou pessoas. Sem o princípio dos direitos iguais, o “direito” resume-se na atribuição de poderes sobre determinados grupos, o que é o trato cotidiano da monarquia aristocrática, Império ou ditadura. Ou seja, não comparte o mesmo significado da legitimidade da lei, de um modo que implica não existir legalidade (“direito”) na ausência da isonomia, apenas mera força bruta. Assim, legitimação de um regime, e legalidade do regime, não são a mesma coisa, pois a primeira pode ser apenas o factum da força bruta, mas a segunda implica uma concepção objetiva como vínculo isonômico da lei. 
              Ao contrário do que Foucault sugere segundo fantasias bem platônicas, não se segue que nas monarquias há menos vigilância ou atribuição de crime do que na sistemática penitenciária das democracias atuais. Posto que o direito oligárquico mesmo apenas define os grupos dominados como inferiores conforme delimitação dos seus deveres com os senhores. Fora da democracia o grupo dominante define como crime a não aceitabilidade da legitimação pela força, inaceitabilidade que é porém a própria legalidade.
            E se formas de salvaguardar direitos de servos subsistem, trata-se de adorno narcisista da classe senhorial, porque não existe qualquer fórum onde se julgue com isenção a reclamação das partes, caso considerem-se lesadas na observância dessas formas. Na aristocracia não há o princípio da legalidade, como podemos considerar conforme acima estabelecemos, que se encontra na democracia. Todo aparelho burocrático de julgamento apenas enuncia a ordem de uma dentre as partes, a oligárquica e senhorial. 
            A interveniência do regime feudal e imperial na Europa cristã por exemplo, onde se trata da aliança da autoridade da igreja e a força militar das famílias nobres, não altera a substância ilegalista do regime, pois não se faz caridade sem cálculo “político” na acepção deturpada do termo, como do mero interesse da manutenção da desigualdade constitutiva dos estamentos.  Assim não pode haver direito na acepção estritamente grega, jônico ateniense, da legalidade, mas quanto ao fundamento, a que vale atualmente nas nações constitucionais, sem democracia, ou, ao menos parlamentarismo, o que torna a proposição jaegeriana do platonismo como regeneração não-democrática do direito sem sentido, a menos que se trate da regeneração do mero estado de domínio senhorial, como de privilégios, poderes arbitrários, de casta, etc. 
             A proposição pode, é claro, ser lida apenas desse modo, como unilateral protesto do autoritarismo de classe. Porém o autoritarismo não combina com o modo expositivo consciencioso de Jaeger, de modo que ele resgata mais do que os comentadores usuais da unidade helênica, a heterogeneidade geopolítica e cultural da Grécia na Paidéia. 
           Jaeger levanta a ponta desse véu  mas não tem sido reconhecido por esse mérito, o que torna coerente que a influência dele até agora não tinha se produzido sequer como recolhimento dessa mudança de planos na história. Talvez o que possa explicar por que a perspectiva nietzchiana do teatro, manifestamente contra Eurípides, tenha sido preponderante. 
               Ora, não é difícil mostrar que ambos, tanto Nietzsche como Jaeger, são pensadores espartanos, enquanto pensadores da aristeia, em grego, a superioridade dos "melhores" (aristoi), termo de que provém o étimo aristocracia, de nenhum modo da igualdade. 
              Os problemas postos na prática dos teóricos pela democracia escravista grega antiga, assim como pela persistência do Poder de classe nos regimes modernos, ou  pelos totalitarismos fascista-capitalista e “proletário”-soviético modernos, são de fato grandes demais para serem ignorados por uma ideologia do progresso linear. O que havia sido a constatação da época pós-positivista de Nietzshe, porém alcançando um auge na era culturalista de Jaeger, quando até mesmo o marxismo, entre Lukacs e Gramsci, os estavam equacionando de modo a fazer inclusão da cultura não de todo oponível agora à preponderância da base econômica. O que tornou tão comum a confiança numa legalidade imanente, não progressista, isto é, não redutível a ideologia das modernas instituições burocráticas, legalidade que todos almejavam conceituar,  era então a constante da recusa de conceituar capitalismo e regime constitucional como opostos, uma vez que a identidade de ambos era a premissa da evolução social do Ocidente. A legalidade "autêntica", a praxis social, se tornava assim o conceito dominante em ciências humanas e uma questão posta na prática durante a reconstrução alemã após a primeira guerra mundial. 
           Além disso, os problemas mesmos abrangem o que a posição desses dois pensadores, Nietzsche e Jaeger, expressa, a desigualdade no âmbito da cultura, o que o esteticismo crescente desde a época de Nietzsche explorava convenientemente, para expressão dos anseios da pequena burguesia emulando a rearistocratização capitalística da grande, num cenário de transição ao monopolismo, modelar do capitalismo alemão, e intensa competição entre os impérios neocoloniais que conduziram à segunda guerra. 
           O nacionalismo redescoberto na Grécia espelha de modo bastante óbvio a problemática “alemã” que coalescia com plena expressão histórica entre Nietzsche e Jaeger. Porém vemos como o equacionamento de ambos é dessemelhante. 
              Nietzsche, por meio do dionisismo, porém de fato expressando a valorização grega da aretê aristocrática, chega a uma dramaturgia do pathos que não é coerente com ela. O próprio aristocratismo nietzschiano é contraditório na medida que o dionisismo no qual se baseia não era “olímpico”, opondo-se explicitamente em Nietzsche ao “apolínio” como o período da Polis dramatúrgica ao homérico. O dionisismo grego era populista, radicalizando-se e internacionalizando-se, pelo sincretismo com mitologias estrangeiras egípcia ou asiática, assim como se radicalizou nos cultos helenísticos da era imperial. O erro de Nietzsche é aliás flagrante, posto que confunde a metafísica socrática, que nasce como a oposição oligárquica mais expressa à democracia, com uma ideologia da igualdade populista e democrática que o repugna. Mas vemos assim que o teatro em Nietzsche tem o sentido da legitimação não institucional, puramente cultural. 
            Jaeger, inversamente ao contraditório populismo aristocrático nietzschiano, por essa valorização da aretê aristocrática em sentido estrito, preserva-a sempre na delimitação homérica como manancial do que evolui, de modo que o moderno jamais deixa de ter algo de conservador, e consequentemente aporta ao platonismo como sua expressão aristocrática mais vital. O papel do teatro grego se torna dialético num sentido hegeliano do termo. Mas da tese homérico-aristocrática à síntese platônica só pôde produzir-se a aufhebung por esse outro termo que transcende a Jônia e o aticismo, o atavismo igualmente tético da aristocracia espartana. 
          Jaeger, inversamente a Goldschmidt, não coloca Platão em total antítese à poesia e consequentemente à dramaturgia, mas sim ao individualismo filosófico de Eurípides, do mesmo modo que não interpreta Sparta como simplesmente a cópia fiel do que Homero reconstituíra da Lacedemônia micênica. É como se Jaeger pensasse uma síntese antecipada por uma nova tese, a Sparta de Licurgo e Tirteu.
            O modo como Jaeger trata o teatro de Eurípides é estratégico ao seu viés platônico, aristocrático nesse sentido histórico, isto é, espartano, onde portanto o que ele pretendeu como síntese era um nomos - lei ou direito -  sem mediação institucional, internalizado pela Educação ("Paideia"). Para isso contava com a ideia de unidade, que o militarismo espartano representava bem, mesmo que muito simples ou toscamente. O silogismo abrange pois, Platão como realização conceitual dessa unidade que não obstante interior, de fato corresponderia à praxis histórica. Assim podemos aquilatar o quanto se mostrou útil o exemplo construído por Jaeger, da sociedade encarnada espartana à conceituada platônica.                Mas o aristocratismo de Jaeger, como um  helenismo muito mais instruído do que o de Nietzsche, não tem nada de sic et non, os sempiternos paraíso ou condenação, da grandiloquência nietzschiana que apenas reedita o estilo populista dos pregadores bárbaros cristãos de que Nietzsche mesmo se pensava a antítese. O nietzscheísmo da voga pós-estrutural, tão agressiva a Hegel, mostra-se bem coerente com a linha barroca que na Globalização segrega, como no período colonial-escravista, o norte e o sul como os estados fixistas de civilização e barbárie, ainda sem as ciências humanas para explicar a “evolução” ainda que nada mais do que pelos sucessivos equívocos biologistas que formam a sucessão dos paradigmas. Não subsistem “países desenvolvendo-se", não importa o quanto o Sul já estivesse industrializado há muito, antes desse novo saque colonial que é a “globalização”, a apropriação por roubo direto, puro e simples, da poupança privada, salários e indústria nacionais na margem anexada pelo capitalismo central, multinacional porém com os monopólios tendo sedes ao Norte.
          Jaeger, com muito mais coerência, não capitula ao anarquismo populista contraditoriamente instrumentando-o pelo dionisismo antigo, ao contrário do que faz o pretenso aristocratismo de Nietzsche. Assim, ainda que tão tendencioso como é patente, o seu exame da democracia grega não seleciona apenas o que pode apontar com o dedo das mazelas sobrevindas na ruptura da suposta homogeneidade dos valores “nobres”, mas ressalta paralelamente o que era grande e belo, como não poderia deixar de existir naquela que foi o único e verdadeiro marco da Grécia na história das civilizações, Atenas.
            Com verdadeira elegância haurida na fonte “clássica” por antonomásia, não há nada no exame de Jaeger que se destaque como a violenta oposição nietzschiana do alto e do baixo, do nobre e do vil, e com Jaeger aprendemos o sentimento da “emoção recolhida na tranquilidade”, a amplidão da alma lúcida o suficiente para acolher o que é bom, seja onde estiver. Porém não com “desinteresse” meramente objetivo, arqueológico nesse sentido da disciplina dos fósseis, da mera reconstituição de coisas, que ele condena severamente em nome da poesia.
           Como “método” que persegue o objetivo apenas “através de um processo de reconstrução”, Jaeger considera a arqueologia um empreendimento “fundamentalmente estéril, mesmo quando as tradições documentais são muito mais numerosas que na Antiguidade.” A seu ver, “só a poesia nos permite apreender a vida de uma época em toda a riqueza de suas formas”. (p. 415) 
           Assim vemos porém que ela funciona de algum modo inesperado, já que fora da legalidade não há garantia quanto à identidade de classe dominante, entre aristocracia ou um “proletariado” consciente de si a partir de embasamentos teórico-políticos. Na atualidade escrevo num país vilipendiado não por uma ditadura instituída, mas pela ação insidiosa de grupos ilegalistas que controlando os movimentos de sindicatos, estudantis e civis em geral, como étnicos e religioso, além dos próprios cargos de governo, instilam a ideologia da falsa liberdade a partir de prerrogativas que semelhantes às do proletariado, seriam porém desiguais relativamente aos cidadãos.  Liberdade falsa, pois restrita espantosamente à ação contra a lei constitucional qualquer que seja, avassalando os direitos humanos individuais os mais básicos, de modo inacreditável devido à impunidade, com a Globalização o permitindo a partir de políticas info-midiáticas e imperialistas que visam a desestabilização das nacionalidades.
           Mas nesse caso o absurdo persistiria, na concepção de qualquer fusão da aristocracia com o direito efetivamente democrático – além de inócuo verniz que não concede meios de letramento em nível formal, mobilidade social por qualificação profissional, garantia dos direitos pessoais ou meramente o conhecimento do funcionamento do regime. A teoria das ideias platônico-socrática não chega realmente a isso, limitando-se à postulação arbitrária de um ser cuja escala idiossincrática de valores deve ser considerado norma superlativa dos demais, ditames assim personificados, dado que toda sociedade se resume a eles mesmos, sob pena capital qualquer oposição ou heterogeneidade efetiva que não se deixasse anular no plano político.
         Como vimos, o culturalismo na acepção daquele objetivo de encontrar uma fórmula da coesão social que não dependesse do que na época era considerada a quimera da instituição burocrática, parece fornecer a resposta ao que seria o enigma de obras tão bem constituídas como a de Jaeger, porém pautadas sob o infundado argumento de um direito aristocrático mais autêntico. 
            Se Jaeger idealiza bastante a Grécia, num sentido parecido com o de Snell que a ela opõe o "oriente" como referencial de obscuridade irracional, Nietzsche teria  esmaecido essa oposição, conceituando pioneiramente o que outros designaram "a Grécia noturna". 
              Quanto a isso realmente Nietzsche revela mais autenticidade, mas vemos que na escola francesa recente a intenção da "inocência" grega à Nietzsche, o livre curso da ação irrefletida como vontade de potência mais sã,  se esclarece na subsequência do neocolonialismo. Trata-se de um aristocratismo que por um lado se propõe como o burguesismo coerente, contra o que só haveria barbárie, mas também, enquanto o capitalismo se afirma sobre os nacionalismos da margem e o comunismo, torna-se como que um resgate do autoritarismo. Procede-se como se houvesse uma constante da aristocracia grega arcaica como um regime de sacrifícios humanos, fechamento territorial, segregação de classe radical, etc., na organização da Polis. A democracia, mera adaptação do poder da soberania, assim conservando-se pelo simbolismo do "centro" (meson). A retórica pode não ser metafísica, mas se ela é mais coerente, é porque enuncia-se como Platão a considerava, um mero expediente para fazer os outros acreditarem que estão comungando de um mesmo significado quando o orador apenas manipula signos vagos, sendo esta a espécie de acordo a que só se pode aceder como harmonia social. 
           O que não parece algo muito demonstrável, tanto pelo que a história registra da luta de classes dos nobres e plebeus, assim como do afluxo da riqueza comercial na superação do regime interiorano aristocrático; pelo estudo da retórica como um repertório dos problemas da linguagem politrópica, isto é, que deve ser adequada ao seu endereçamento exclusivo;  como pelo fato mesmo da Polis democrática não adotar sacrifícios humanos na letra de sua lei, de modo que os deuses benévolos da Cidade são eles mesmos referências da transformação da mentalidade. 
             Muito do aspecto sádico da aristocracia grega arcaica pode estar relacionado à circunstância do período interiorizado, parecido com o feudalismo inquisitorial cristão europeu, devido ao quadro de invasões e o caráter iletrado dos dórios. Porém se a cultura é um referencial independente, a aristocracia como regime tem constantes coerentes com o pressuposto de todo autoritarismo. Se os conhecimentos novos sobre entornos asiáticos tem servido mais recentemente para generalizar a Grécia como tipicidade indo-europeia, vemos que questão de como emerge o regime democrático, em que vicejam textos que testemunham a mentalidade isonômica legalista na Grécia antiga, é que se torna pois muito importante desenvolver. Mas aqui espero mostrar que o conhecimento dos antípodas é um dos recursos mais úteis nesse mister. 
      

     III  
         
            Podemos considerar que se Sparta é o ideal que pareceu a Jaeger “regenerativo”, atua aí o pressuposto da degeneração da democracia ateniense. Mais do que a Polis na Lacônia, de que se deriva a qualificação do "laconismo", exemplificando-se assim um temperamento, Sparta é a influência que permitiu à aristocracia ateniense se reorganizar durante a vigência democrática, a partir de certa resistência que nada menos que o platonismo permitiria situar no plano cultural. Compreensivelmente, se assim se posiciona, Jaeger não pondera o nexo de Sparta com a Persia, para inversamente fazer dela o referencial genuíno da cultura grega. 
         Mas o critério desse julgamento da degeneração sobre Atenas, ou é ele mesmo democrático, assim como a consideração sobre o que por si mesmo é são, ou não teria sentido na circunstância de que se trata, na medida que não era a restauração da democracia o que estava em jogo, mas a condenação de toda heterogeneidade como impura, na oposição aristocrática a ela. E como tudo comprova, a mentalidade aristocrática e sua propaganda simpatizante de Sparta, sobretudo entre os jovens, era a tônica da vida social na altura da produção dos escritos platônicos.
         Se Jaeger estivesse apenas considerando a democracia como degeneração da Polis grega, de que Sparta teria se isentado, isso seria mais contraditório com os fatos, uma vez que na Grécia somente Sparta se organizou como unidade militarista, enquanto as Polis constituíam regimes de participação civil, assim também sem desenvolvimento de produção letrada, sendo as demais Polis geralmente fontes de contribuições nesse sentido. 
                Independente desse anacronismo de Jaeger, retornando ao seu posicionamento da Polis como  centro estável em torno do qual tudo o mais na cultura grega antiga vem gravitar, vemos como por isso mesmo Sparta resulta na sua exposição o mais profundamente inserida no meio cultural grego. O fato dela ser nada menos que iletrada além do básico, por lei proibindo letramento acima desse nível e do conhecimento das genealogias heroicas, e, mesmo assim, não abranger o parco ensino da civilidade, as classes mantidas na servidão, se torna repentinamente elevado ao motivo mesmo pelo qual, em vez de um contraste total com a habitual generosidade com que as produções da cultura letrada promanam da vida educada no ethos humanístico que caracteriza a formação da Polis grega, Sparta surge como o mais típico desta.
            A isonomia não é aí, certamente, senão um modo de segregacionismo violento e consciente, praticado como norma de grupo a todo outro que não o pode integrar, nomeadamente os escravos gregos messênios, mas, conforme Jaeger estabelece, é inegável que “A criação mais característica de Sparta é o seu Estado, e o Estado representa aqui, pela primeira vez, uma força educadora no mais vasto sentido da palavra.” (p. 109)                  O pioneirismo é compreensível, mas justamente apenas no interior da questão antropológica da Grécia Antiga. Ao contrário do que diz uma canção popular (“Mulheres de Atenas”), todas as Cidades gregas que não Sparta foram pioneiras nesse sentido pelo que, como “Polis” fundaram-se conforme o princípio de sua existência ser em função da cidadania. Sparta, inversamente, é o Estado em função do qual o cidadão vive. 
            Porém assim não haveria nada singularmente “grego” ou novo aí, posto que todo regime bárbaro era habitualmente o mesmo despotismo fascista onde não havia qualquer questão da “legalidade” que expressasse o ter vindo a ser pensável da relação da lei com o indivíduo. O homem era apenas trânsito da ação dos deuses e do dever-ser comunitário imutável. Mas se é como Polis, como Estado leigo, organizado em torno da constituição, que a subsunção arcaica se testemunha em Sparta, então compreendemos algo do “pioneirismo” a que se refere Jaeger.
              O que a história antiga tem a mostrar são os acontecimentos que resultaram no recalcamento da legalidade, esta que só retorna na modernidade, mais de dois mil anos depois. E mesmo assim, como já ressaltei, o imperialismo dos dois séculos recentes implica a Globalização como o que está se demonstrando hoje, enfrentamento da força ilegalista que está em curso, porém ainda restando as constituições formalizadas e pós-escravistas-coloniais.              
            Os acontecimentos no Brasil da atualidade, onde escravismo com roubo direto de salários e direitos, corrupção com despotismo generalizado no governo, além de violência direta de gangs nas ruas, nas telecomunicações e no atendimento de comércio e serviços ,panopticum ilegal nos domicílios projetado por gangs, fazendo do cidadão que paga impostos e taxas de habitação, cárcere privado sem qualquer consentimento, violência pura abuso do tipo mais calhorda, invasão  de computador pessoal, espionagem digital, etc.  sendo acontecimentos inaceitáveis porem cotidianos, mostram o rumo da Globalização de multinacionais inteiramente contrário à vigência da legalidade constitucional nos países dominados ("periféricos"). Nesse rumo, de modo inteiramente inantecipado pelo vocabulário e mentalidade “modernas”, as assim designadas “esquerdas” se mostram o meio mais adequado da dominação, como focos de populismo sectário anti-constitucional que tão bem serve aos projetos do cartel capital-imperialista info-midiático planetarizado. Uma vez que as esquerdas pregam conforme o marxismo, o axioma a priorístico da modernização como meio do político, isentando-se de arcar com a tarefa de assimilar as informações que mostram o quanto o capitalismo, ao contrário do que prega a tecnologia de bugigangosfera, se limita a mentalidade arcaica. 
             Por causa disso, hoje estamos tendo mais consciência no exame histórico da atuação dos partidos comunistas e similares de esquerda da modernidade, já não abstraindo sintomaticamente o objetivo ditatorial, corrupto, convergente com a ideologia da industrialização. A aristocracia suposta modernizante do “proletariado” é igual a qualquer outra, e o que ela discrimina não exime o próprio trabalhador que não integra os ditames ou a imagem projetada pelo partido. O mesmo tem sido porém multiplicado a quanta no populismo, para qualquer característica de grupelho, não obstante estar se verificando na ciência, nesse ínterim, a inviabilização de toda “diferença” justificável do ponto de vista biológico.
           Assim hoje temos uma posição na ciência muito mais consolidada, a propósito da relação entre sanidade mental e legalidade constituída, o contrário do estado de coisas antigo. Lá o que se expõe são os acontecimentos que tornaram impossível o percurso da Cidade-Estado, recalcada pela conjugação crescente da força, e formada inversamente ao ideal fascista-imperialista de Sparta. Mas como estamos constatando, quanto à geopolítica grega, o erro é considerar que a força espartana é apenas materialmente exercida.
           A lição de Jaeger a propósito é inestimável, podendo ser interpretada como a genealogia do fascismo moderno propriamente dito, a administração carismática do “eixo”. O Estado imperial hobbesiano não seria aqui o modelo adequado, justamente por esse aspecto educacional totalizante que Jaeger ressaltou a propósito de Sparta. Na era colonial-escravista, o príncipe representava o poder moderador sobre uma sociedade pré-existente, clivada como estava entre aristocracia e burguesia. No “eixo”, a concepção totalitária subsume todo o sentido do poder na subsunção das partes ao todo. Porém o todo estando personificado carismaticamente por um líder máximo, assim a meu ver ao contrário do modelo da “cebola” que Hanah Arendt propõe para o moderno nazi-fascismo, como um sistema de propagação da ordem a partir do centro, por todas as camadas da sociedade, que assim seriam igualadas.
       E a mesma subsunção parte-todo é o que Jaeger define como a mola espartana da educação estatal. Por essa lição podemos compreender que a característica mais saliente das nações totalitárias do “eixo” no século passado, a liderança passional-carismática na Alemanha e Italia especialmente, não era de fato o principal, mas sim a ditadura cultural, a dominação ideológica sobre a subjetividade, que também era o objetivo do lado oposto, como na guerra de posição gramsciana. Porém sendo dentro da cultura nazi-fascista ela mesma que o líder máximo tem um sentido inalienável. Consequência contudo supérflua à demonstração de Jaeger do a priori da cultura totalizante que Sparta serve tão bem ao regime pan-germânico, na como sua própria origem indo-europeia greco-antiga
            O industrial-imperialismo da modernidade, sobrepondo-se como força e ideologia ao movimento progressivo de organização da sociedade civil na legalidade constituída, tornou-se um novo tipo de Leviatã contra-estatal, a partir do momento em que distorceu a ciência num discurso de domínio tecnológico capaz de atuar como propaganda da evolução social à direita e à esquerda, supostamente justificando subsumir assim todos os objetivos da educação a partir da ontologia mesma do Homem. Vemos assim como se comprova que capitalismo e Estado democrático são antípodas.
            A chave da dominação totalitária é portanto a ideologia fascista do “todo” que se arroga o verdadeiro sentido do Estado mas não define o papel da legalidade, o poder é o que resulta da capacidade de defini-lo como um status - raça nacional, condição privada, partido político, etc. - e representá-lo como poder de aglutinação das partes. Estas deixam de ser partes, integrando o todo elas são apenas a contra-parte do “fora” por dominar e/ou excluir. A definição do “todo” é pois a justificativa “evolutiva”, “cultural” ou “naturalista” desse domínio.  O culturalismo de inícios do século XX formulou-se pois sob uma metodologia funcional ou holística que evolui a um senso-comum generalizado de esquerdas, inclusive nos movimentos ditos humanistas dos sixties que hoje ainda reverberam ídolos,  do "rock" à física de Capra, mas teve igual peso na extrema-direita nazi-fascista. 
            A aglutinação do “eixo” era então a palavra de ordem da segregação do que não se coadunava à subsunção identitária da “evolução”, tendo tido papel importante a questão racial, enquanto na esquerda trata-se de invectivar a organização civil como verdadeiro referencial do político. A questão racial do "eixo", como em Sparta, porém vemos que não pode ser de fato explicativa do fenômeno – assim, à esquerda, a propaganda do “proletariado” funcionava do mesmo modo, e hoje podemos esperar algo parecido na propaganda das prerrogativas do “gênero sexual”, do "negro", etc., como no habermasianismo de Benhabib,  narrativismo de Carol Gilligan, "etnociência” segregacionista-obscurantista à Sandra Harding, etc.                Se o pós-guerras e o “estruturalismo” não são um cenário coerente com esse horizonte atual, esses exemplos mostram como o resultado não deveria surpreender. Se o fim da guerra não implicou ruptura da ideologia do industrial-imperialismo “evolutivo” para o bem ou para o mal, se pelo contrário, o imperialismo tornou-se muito mais potente e avassalador na segunda metade do século passado, só o que poderia parecer incongruente é o modo como a new left em particular e a esquerda em geral, abrangendo Althusser e o pós-estruturalismo, jamais o equacionou a não ser até onde pudera manter, esquizofrenicamente, a mesma ideologia do ocidente absolutamente modernizador.
          Na origem totalitária-totalizante da esquerda e direita do século XX, a reflexão de Jaeger equaciona pois na genealogia espartana do totalitarismo, um papel da força que não explica materialmente a dominação. Esse papel não é menos importante, assim como, obviamente, a quantun material da força. O que faz todo o mérito desse texto altamente qualificado que é a Paidéia, parece ser ter mostrado tão bem como a força tornara-se um conceito de educação, uma fórmula de “educação estatal-racial” em Sparta. 
              Fórmula que devemos ver, contudo, como o açambarcamento da organização de Estado pelo ideal de educação totalizante, unitária, como ideologia da força, ao invés do contrário, um papel do Estado na prática educativa, como o que é esperado na democracia. A prática educativa enquanto letramento, pois, não está subsumida por qualquer aparato estranho a si, como ao devir dos conhecimentos. O oposto é o meio totalitário da educação, e o aparato da ideologia é pois em que se converteu em Sparta, mas também na Alemanha do “eixo”, o que poderíamos designar a força (ideológica) da força (material). 
            Aqui mostra-se porque o modelo da cebola arendtiano não foi suficiente para a questão do totalitarismo, mesmo não sendo negável que o modelo da pirâmide, um império do alto se exercendo sobre os vértices dispostos numa base, parece mais antigo que moderno. O fato é que o modelo da cebola ignora o aparato ideológico da força, mas assim vemos que já a Sparta não conviria o modelo da pirâmide.

        Em qualquer formação militar normal, de defesa do território nacional, a necessidade do comando é evidente por si só, assim nas sociedades simples que exibem regime igualitário, a função da chefia é exclusivamente militar, reservada ao caso de guerra. Mas numa formação social totalitária a função militar é investida imaginariamente, oque é talvez um denominador comum em sociedades invasoras, que não puderam se fixar no território de origem por motivos de escassez – contrariamente a sociedades longamente estabilizadas, que puderam desenvolver habilidades práticas e letramento pelo abrandamento dos costumes em tempos pacíficos. 

        Assim como Roma ou os bárbaros que destruíram o império romano e representam as proto-nacionalidades europeias atuais, as sociedades guerreiras são geralmente aristocráticas. O definiendum do sistema, em sociedades orientadas para a invasão bélica, é a hierarquização das relações, desde a liderança máxima do führer, relativamente aos governados, até os mais comezinhos modos de relação social de modo que sempre fique claro que dentre os “participantes” algum é “superior”, “líder”, “primeiro”, etc., em relação ao(s) outro(s).

     Essa é a linguagem repetida ad nausea nos programas de televisão, nos discursos típicos de modelização ideológica na internet,  gangs da atualidade,  modelos da psicologia de pacotilha, meras adaptações à publicações da comunicação em massa, partidos políticos e sindicatos, ligados ou não a radicalismos religiosos de massa, e principalmente na propaganda, nessa era da Globalização como império de multinacionais norte-americanas, europeias e asiáticas – contrariamente ao tipo de veiculação e relacionamento liberal na época do Welfare State.

        Essa linguagem hiper-investida no business de mídia ao longo da consolidação do imperialismo, e como um objetivo de classe definido pelo interesse do próprio capital, literalmente forjou um desejo pelo líder máximo naquilo que logrou consolidar plenamente na Globalização, uma geração pós-liberal com vertentes neo-nazi-fascistas e de modo geral impregnada pelo imaginário da hierarquização. Nisso ocorreu uma despotencialização planejada do letramento para redução do próprio sistema escolar ao aparelhamento info-midiático. Assim agora, como constata-se no Brasil, há atração dos jovens pelo retorno da monarquia colonialista ou regimes de força à direita e à esquerda. A propósito da atuação do capital de mídia como fator determinante na articulação imperialista norte-americana ver o meu Riqueza e Poder, a Geoegologia (Quártica editora). 

        Quanto à Alemanha como “caso” jaegeriano, vemos que de fato lá se radicalizou o culturalismo numa ideologia de Estado como reação à hostilidade declarada pelo imperialismo inglês à prosperidade alemã, o que resultou na bastante injusta primeira guerra mundial. A transformação da Inglaterra, de modelo da constitucionalidade parlamentar a império neocolonial agressivo na Europa dos finais do oitocentos é provavelmente um dos fatores que tornou o culturalismo em geral, abrangendo anarquismo, marxismo humanista, Teoria Crítica, etc., vindo já desde o aristocratismo de Nietzsche e o positivismo ditatorial de Marx, uma ideologia contrária ao liberalismo de Estado como mera ideologia de classe burguesa. A transformação culturalista de Nietzsche em diante se define porque, como em Foucault , já não considera a burguesia apenas como classe proprietária, mas como classe para-si detentora da ciência fenomênica – que assim os críticos desqualificam quanto à pretensão de ser o oposto da ideologia.

       Fatores do regime hitlerista como o racismo não foram de fato exclusivamente alemães, ainda que aí explorados pelo imaginário hierárquico da força.
           
 A partir daqui porém o paralelismo de antigos e modernos, Sparta, Alemanha e Globalização, deixa de ser interessante na medida em que as noções de força nesses dois casos não compartem a mesma ideologia do industrialismo tecnológico, midiaticamente estetizado, que é prerrogativa do moderno totalitarismo “evolutivo”. 

É significativo porém que na atualidade o complexo militar-industrial que define os Estados Unidos segundo seus próprios intérpretes, mas na Globalização, como ápice da articulação mídia-executivo, anti-democrática neonazista aversiva aos direitos humanos, atuando lavagem cerebral mundializada por meio de personal computer microsoft - cujo monopólio abusivo no Brasil, conjuntamente a provedores e aplicativos que atuam odiosamente no mercado local como Claro, Oi, etc., foi implementado associativamente desde FHC (1995, 2003), principalmente durante a vigência do petismo (2003 – 2016), mas continua do mesmo modo no bolsonarismo - assim como o expediente de multinacionais que detem criminosamente monopólio de serviços básicos, como a Naturgy, cobrarem contas abusivas a cidadãos que não tem como se defender porque o suborno corrupto se estende ao judiciário - que espionam cidadãos idôneos para objetivos de palhaçada de filmes, músicas norte-americano ou demais produtoras corruptas,  veiculação de apoio a partidos ou sindicatos fascistas populistas corruptos assim como atuações similares de direita, conivência de autoridades públicas com banditismo ordinário praticado por quaisquer - que nada tem de “arte”, reduzindo-se a propaganda contra o desenvolvimento da inteligência acima do nível do débil mental - o aparelho ditatorial de holywood tenha propagandeado identificar-se ao ideologema spartano – atuando porém conectivamente ao Brasil como polo do seu “eixo” neototalitário. 

           Na atualidade somente golpes de Estado nacionalistas, que expulsem a dominação de multinacionais nos serviços básicos, o banditismo internacional e destrua os partidos políticos, sindicatos, instituições, firmas, agências de propaganda, mídias, gangs, ou indivíduos que atuam corrupção abusos diretos contra cidadãos, poderão fazer retornar a observância da legalidade constitucional em prol da garantia dos direitos civis dos cidadãos. 


       A genialidade de Jaeger é ter obtido no platonismo como expressão cultural de Sparta, o que poderia ainda assim manter-se em comum, até mesmo como fator explicativo da oposição, em termos, justamente, de “evolução” a partir da origem qualificada. Não de todo diferença de jure, não obstante os fatos. 

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       Sparta, Platão e Paidéia
                                               

             Como índole do platonismo, educação tem um sentido independente de todo da pedagogia como mister de se ministrar ensinamentos especializados. E se a educação assim se define pela inculcação de um valor único, posicionante do indivíduo por sua subsunção a ele, a referência de Jaeger a uma “ideia central que penetra todas as minúcias da educação espartana” (p. 109) não é nada trivial ou quimérica. Se ela realmente funciona nessa pretensão, de fato Jaeger permite ver que é apenas enquanto o que logra se manter atuante contra as vagas oposicionistas. 
              Tirteu, o autor da elegia, na origem um gênero de poesia patriótica, onde especifica as leis espartanas, fazia tábula rasa dos protestos do demos espartano por melhores meios de vida após a guerra de subjugação da Messênia. 
               Na poesia patriótica de Tirteu, o ideal espartano de subjugação completa da vida do indivíduo ao objetivo militarista do Estado escravocrata, é bem um estabelecimento supraterreno da realização virtuosa, o nome dos que batalharam pela pátria tornando-se glorioso, e não havendo nada glorioso além do serviço prestado à pátria.
          O nome que resta, muito “além” de qualquer importância da vida, como dos que conservaram até o fim o imperativo da virtude que é jamais fugir do campo de batalha, jamais se deixar escravizar. Porém não havendo a mera possibilidade disso fora da instauração da guerra pela escravização da Messênia por Sparta. 
               A luta de vinte anos pela escravização dos messênios torna-se um clássico na construção da antítese de Tirteu, amparada na anfibologia da glória do senhor definida apenas como o oposto do opróbrio do escravo – como bestas, “vergando sob duras cargas”, tendo que ceder metade de tudo o que ganham aos dominadores, depois sendo obrigados a manifestar profundo pesar quando qualquer daqueles morre. De fato a poesia de Tirteu tem por motivação a insurreição dos messênios, anos após a guerra inicial, que os espartanos novamente dominaram muito pelo fascínio que aquela poesia exortativa provocou. 
             Mas importante é o modo como Jaeger parece ter querido articular essa atuação ao que pôde reunir como traços de temperamento e costumes socialmente documentados, assim como da cultura. Ele não escondeu que refletiam factualmente os adornos retóricos da mensagem invariável de exortação à submissão cega. É curioso que na parte da Paideia consagrada a Sparta, a consciência crítica tenha comparecido, mesmo que sob certa reserva, mas ao longo da obra a perspectiva histórica reflita apenas simpatia irrestrita.
             A reserva se expressa bem nitidamente no modo pelo qual Jaeger tenciona justificar a unidade educativa do militarismo espartano. (p. 110) Informando que foi Aristóteles quem o atribuiu como traço unilateral daquela Cidade-Estado, Jaeger raciocina em termos do devir possível desse dado. Por um lado, para a frente, de fato teve um resultado desastroso. Após a vitória na Guerra do Peloponeso, segundo Jaeger, “a antiga disciplina espartana surgiu involuntariamente à luz do uso maquiavélico que dela fazia Sparta”, investida, conforme a melhor expressão de Rostovtzeff, “em seu novo papel de rainha dos mares.” (op. cit. p. 212)
            Se Rostovtzeff cobre num capítulo inteiro os problemas que Sparta teve que enfrentar nesse status, especialmente sua dívida para com a Persia e a resistência dos descontes subjugados, Jaeger, em um parágrafo, resume a situação ao essencial no plano interno, mostrando como foram as instituições da própria Cidade-Estado corroídas. O dinheiro entrou a rodo, mas a torrente monetarista numa sociedade que até aí mal o conhecia, implicou a suspeita traduzida num oráculo, de que acarretaria ambição fatal à tradição. De fato, conforme Jaeger, “Nesta época, dominada por uma política de expansão"  calculista ao estilo de Lisandro,  o general espartano vencedor de Atenas ao fim de prolongada série de hostilidades, “em que os Lacedemônios se tinham apoderado despoticamente das acrópoles de quase todas as cidades gregas e as liberdades políticas das chamadas cidades autônomas haviam sido todas destruídas”, é que ele situa a distorção da disciplina em dominação maquiavélica. 
              Mas, para trás, a origem militarista é o que explica a conservação do tipo racial puro em Sparta, o fato do seu militarismo ser a conservação mais perfeita do modo de vida das hostes dórias assim como era no momento da aportação invasora. Foi Karl Müller quem a conceituou assim, e Jaeger apoia sua perspectiva do “antigo militarismo espartano como a sequência de um estado antiquíssimo da civilização dórica. Os Lacônios o teriam conservado desde a época das grandes migrações” de que resultara a ocupação do território pelos pioneiros. (p. 111)
               Mas na organização da Cidade-Estado, os representantes da estirpe racialmente puros eram apenas uma minoria, embora dominante, e a organização mesma um produto tardio da fixação: “Sob o seu domínio estava uma classe popular, livre, operária e camponesa, os periecos, bem como os servos hilotas, a massa dos submetidos, quase sem quaisquer direitos”. A história da fixação é pois a das guerras de conquista dessas populações localizadas no território, como a vizinha Messênia reduzida à escravidão.
               A organização mesma da classe dominante, que na singularidade da Cidade-Estado definia contudo a própria “Polis” enquanto o status da cidadania, traduz o melhor possível o que resultou desses componentes históricos: “A assembleia do povo espartano não é outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Limita-se a votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do conselho dos anciãos. Este tem direito de dissolver a assembleia e pode retirar da votação as propostas com resultado desfavorável”. Além disso, “ o eforato é a autoridade mais poderosa do Estado e reduz ao mínimo o poder político da realeza”, porém atuando como poder moderador entre os senhores e o povo, concede a ele apenas “um mínimo de direitos e conserva o caráter autoritário da vida pública...”.
              Jaeger não esconde também o caráter repressivo da educação da classe dominante, na medida que orientada para a coibição de qualquer mudança. Mas é sua análise desse item que lhe permite construir a perspectiva da Paideia. Ou seja, o exame da paidéia espartana não deve obscurecer o fato de ser o sustentáculo de todo o traçado da "Paidéia", a obra de Jaeger sobre a “formação do homem grego”, conforme o subtítulo, que na realidade é uma reflexão única, devido ao seu tão grande alcance, sobre o sentido da educação como da cultura humanística e histórica em geral. 
           Ele procede assim de modo orgânico, instituindo um sentido totalizante, um verdadeiro processo educativo, a partir da lenda de Licurgo como estadista criador da organização de Estado em Sparta. Considera não haver dúvida sobre a falsidade da hipótese de uma “constituição de Licurgo” originária, tendo somente um status de lenda ou tradição “secundária”. Porém asseverando que não se pode eliminar totalmente a questão sobre até que ponto Licurgo contribuiu na elaboração das leis espartanas. 
                  Ora, o certo é que o interesse aí reside em saber como e por que essa lenda se afirmou tão generalizadamente na Grécia. Conforme Jaeger, foi a luta do século IV por uma “possibilidade da educação” dependente “em última análise de se conseguir uma norma absoluta para a ação humana”, assim ação num sentido de ethos, conduta orientada, não como simples atuar funções utilitárias, que produziu ou consolidou essa lenda. Na verdade a influência de Sparta se conservou mesmo após o século IV, como um referencial de rusticidade saudável oposta ao que nos impérios se motejava como o artificialismo afetado de Atenas, uma antítese que Sexto Empírico exemplifica e reporta bastante bem no "contra os retóricos". 
             Conforme Jaeger, tudo o que sabemos sobre a significação de Sparta no mundo grego e sobre a constituição de Licurgo “se formou de acordo com uma teoria posterior sobre o Estado e a educação. Nesse sentido é pouco histórica. Para compreender seu significado exato, é preciso levar em conta que ela surgiu na época mais florescente da especulação grega sobre a essência e os fundamentos da paidéia”. (p. 114)
               O significado histórico do século IV aí é interessante, pois, como vimos, na verdade Jaeger recusa totalmente que os movimentos genuínos dele, o florescimento das escolas pós-platônicas da filosofia, seja integrante da Paideia autenticamente grega. Uma vez que elas integram o helenismo como era que se inicia com a conquista macedônica, isso teria certa justificativa. Porém não de fato, como já acentuei com Bréhier, por que são essas escolas elas mesmas gregas e somente nelas a Paidéia já não é o que decorre de premissas do saber filosófico, vem a ser a súmula ou objetivo explicitado do saber. O escopo da recusa jaegeriana de prosseguir a Paidéia após Demóstenes, é evidentemente centralizar o platonismo como o para-si do que tudo o mais na Grécia é o em-si. 
                 Esse é pois o significado do seu século IV, em que o modelo espartano torna-se de interesse fundamental: “Recorda-se constantemente a aprovação délfica da 'constituição de Licurgo', em oposição à lei meramente humana e à relatividade da democracia”. Nesse modelo platônico da Grécia, como vimos, só haveria posição paralela em Xenofonte, que se torna altamente valorizado na Paidéia.
             É assim que nesse ponto em que se constitui a característica orgânica da paidéia espartana como a pedra angular da Paidéia de Jaeger, o sentido do platonismo é assumido como do inteiro século IV de tal modo depurado: “Todas as fontes que possuímos inclinam-se a apresentar a disciplina espartana como a educação ideal. Para os homens do séc. IV a possibilidade da educação dependia, em última instância, de se conseguir uma norma absoluta para a ação humana. Esse problema encontra-se resolvido em Esparta”. Jaeger chega a assumir que “sem o interesse ardente daquele movimento educativo por Esparta, não saberíamos nada sobre ela.” 
              Neste século, portanto, é que se consolida a significação grega do “cosmos espartano” em termos de “um sistema consciente e coerente, e que a priori acreditava que o mais alto fim do Estado era a paidéia”, ou seja, na definição formal de Jaeger, “a estruturação da vida espiritual baseada em princípios e sistematizada de acordo com normas absolutas”.
             Se Licurgo existiu, mesmo que tenha criado a grande rhetra, a constituição que Tirteu no século VII já conhecia, isso não explica as origens da educação espartana assim como era quando Xenofonte a apresenta, segundo Jaeger. Reflete em grandes linhas uma origem que a Jaeger parece ter sido “a antiga nobreza grega”, mas que evolui evidentemente, já que apresenta-se comum aos que não eram nobres.  
               O singular aí é que essa “participação de todos os cidadãos espartanos na educação”, enquanto militarista, “torna-os uma espécie de casta aristocrática”. O que seria tanto mais compreensível se os cidadãos em Sparta são apenas a classe dominante sobre as populações subjugadas, porém o que Jaeger focaliza nesse ponto é apenas a unidade orgânica, totalizante, da educação. Assim transitando decisivamente a uma “visão com” a classe dominante ou a Sparta histórica, desde a inicial "visão por trás” como da reconstituição das fontes por ou para uma exposição onisciente.        
              Desde aqui, pois, Sparta e Jaeger prosseguem numa comunidade de perspectiva que funciona tão bem que mesmo o que poderia parecer criticável não é comentado como tal, valendo como que por si só. O efeito é algo jocoso. Reconstituindo a vida cultural a partir das escavações, informa a introdução da música, na época de Tirteu, por Terpandro de Lesbos, inventor da cítara de sete cordas, que foi chamado pelos cidadãos espartanos para dirigir o coro das festas religiosas e organizá-lo segundo o sentido de suas inovações. 
              Ora, não se pôde subsequentemente mudar nada do que assim se introduziu: “A Esparta das épocas subsequentes adotou rigidamente os padrões de Terpandro e considerou toda a evolução posterior uma revolta contra o Estado”. E essa observação calha à ressalva que Jaeger está procedendo, sobre a identidade “de essência da vida espartana à vida alegre das demais cidades gregas”, não obstante “o sombrio rigor que foi considerado” essa mesma essência. Ele defende em seguida a própria “rigidez” da norma terpandra na música em Sparta, pois “mostra até que ponto a antiga Esparta encarou a educação musical como coisa essencial para a formação do ethos humano, na sua totalidade”.
               De fato a evolução da cultura musical em Sparta não se limita à contribuição de Terpandro, que como vimos só define os padrões instrumentais. Jaeger reporta assim o marco histórico dos versos de Alcman escritos para o coro das jovens espartanas. Ele viera de Sardes e naturalizara-se cidadão espartano. Seus versos introduzem “com perfeita consciência o dialeto da Lacônia na lírica coral” (p. 129). Contrasta assim com a tradição homérica das elegias de Tirteu. Nesse contraste, as letras corais de Alcman, em língua pátria e popular, “jorram do humor jovial e da força realista da raça dórica, que só em traços isolados se manifestam na estilização homérica das elegias de Tirteu”. 
                Nas suas canções, Alcman registrava os nomes das jovens do coro, mas também aí temos uma documentação do temperamento comum espartano, pois Jaeger noticia que as canções apregoavam, dessas jovens, “os seus méritos e as suas pequenas ambições e invejas”. A rivalidade era assim um traço típico. As canções de Alcman “transportam-nos com idêntica vivacidade e realismo às rivalidades dos concursos musicais da antiga Esparta e revelam-nos que o espírito de emulação do sexo feminino não era inferior ao dos homens”.
              Mas a estilização homérica da língua elegíaca de Tirteu não é algo de inferior importância. É na verdade a substância desse capítulo cujo tema é o ethos educativo. A transformação espartana da aretê heróica como ideal homérico, em heroísmo do amor à pátria, é reportada em ato no terceiro dos poemas conservados de Tirteu. Aqui Jaeger reporta ter feito obra historiadora, tendo sido o advogado da causa de sua autenticidade, contra as versões que a negavam (p. 121). 
               Atribuindo pois a Tirteu esses versos que segundo Platão nas Leis, melhor refletem a essência da aretê espartana, nesse ponto Jaeger chega a falar de “crise” do antigo ideal homérico “no período do crescimento da cultura das cidades”, assim pronunciando-se sobre o que sua perspectiva totalizante constitui de hábito em termos de empréstimo e continuidade. Se Tirteu empresta versos e ideias do vocabulário de Homero (p.120), a transformação de sua aretê assoma aqui como o fenômeno mais importante. 
               Vale registrar que os versos de Tirteu citados por Jaeger tem a mesma estrutura retórica que o famoso trecho de São Paulo sobre o amor na epístola aos Coríntios, em que a soma das vantagens que alguém possa possuir resulta a nada uma vez que nunca iguala o simples ter amor. Em Tirteu, trata-se dessa preminência atribuída porém ao heroísmo combatente: “Eu não quereria guardar memória de um homem nem falar dele devido à virtude dos seus pés ou à sua destreza na luta, ainda que ele tivesse a força dos cíclopes e ganhasse em velocidade do trácio Bóreas... E ainda que fosse mais belo que Titono e mais rico que Midas e Cinira, mais régio que Pélops, filho de Tântalo, e dotado de uma língua mais lisonjeira que Adrasto, se tivesse todas as glórias do mundo, mas não possuísse o valor guerreiro, não quereria honrá-lo”.
             Mas qual esse valor? Conforme Jaeger, nada menos que “uma autoridade moral e política totalmente nova” e “em favor da qual se empreende uma nova ação educativa”, ainda que expressa “por trás das formas e dos primitivos ideais homéricos”. Nesse ato estético pelo qual “o ideal homérico da aretê heróica transforma-se no heroísmo do amor à pátria”, Tirteu é “o poeta” que “quer criar um povo, um Estado de heróis”. Ora, se o imperativo único é jamais fugir no campo de batalha, o ideal desse heroísmo é nada além do sacrifício individual, a famosa ética da bela morte, como da morte  na guerra, única dignificante. 
                Naturalmente, se “o poeta aspira a impregnar deste espírito a vida de todos os concidadãos”, não é para criar um povo de suicidas, mas sim para criar um tipo, na sociedade militarista aristocrática, que faz a contrapartida da rivalidade cotidiana dos jovens, homens e mulheres. É o vencedor, que não fugiu da batalha mas que dela regressou vivo, salvando a pátria e nela podendo se estabelecer como cidadão exemplar. Como antes salientei, porém, a exemplaridade do vencedor é construída apenas pelo seu contraste ao vencido messênio que Tirteu faz ver como a vida penosa, miserável, indigna de ser vivida, dos escravizados. A falácia ética, por assim expressar, é aqui notável, já que a oposição do mal e do bem, o penoso labutar do escravo e a satisfação incontestável do senhor, demonstra apenas o ímpeto dominador, não tendo havido qualquer tentativa messênia de escravização dos espartanos, que se saiba. O fundamento ético é portanto a satisfação oriunda da rapina, algo que aparentemente escapa a Jaeger.   
             A lírica torna o contraste absoluto entre o bem e o mal, os valores humanos assim alçados a eterno ideal do bem-aventurado em seu contraste ao condenável. Ela elide pois, a história, onde a escravidão, recursivamente, foi apenas correlato do próprio esforço da guerra escravizadora.
              Entre a epopeia e a lírica elegíaca – como Jaeger salienta, ao contrário do que se diz, o gênero “elegia” não se limita a prantear os mortos, pois na Grécia é o metro da exortação ao patriotismo, assim também no efésio Calino (p. 126) – só é preciso acrescentar ao fundo mítico dos feitos da nobreza homérica um fator de endereçamento direto aos ouvintes, os concidadãos. Assim o epos do valor se transporta ao gênero da exortação. Jaeger ressalta que um endereçamento desse tipo já devia estar contido na própria epopeia, ao menos como possibilidade interpretativa: “Assim o sentiram os espartanos. Para criar a sua elegia, Tirteu precisou apenas transferir para a realidade das guerras messênicas o poderoso ethos que anima as cenas homéricas”.
                Há porém muito mais envolvido nessa transformação, se ela introduz um verdadeiro ethos na história, ou seja, um fundo de sentido antropológico-social que se contrasta a outros na sua evolução autônoma. Aí, pois, Jaeger logra construir uma oposição mais profunda que a nietzschiana, entre os ethoi guerreiro e sacerdotal, como entre a potência e o seu recalcamento posterior.
              A oposição de Jaeger deve ter tido uma influência mais poderosa em sua época, pois não assimilável apenas pelo populismo desejoso de ação imediata e irrefletida. Ela expressa assim dois percursos históricos do “homem político”. Para Jaeger, “é com a elegia de Tirteu que se inicia o desenvolvimento da ética do Estado”, não com o ideal jurídico que ele estuda em seguida na formação da cidadania jônia e ateniense. Assim o contraste vai resultar na personificação nietzschiana da antítese entre gregos e cristãos, mas sendo em Jaeger mediada por esses outros gregos, os individualistas que se criam do jurídico à democracia. São estes pois, que podemos entender como antecessores dos individualistas cristãos, interessados só na salvação de sua alma pessoal. 
              O contrário é verdadeiramente grego, nesse sentido de genuinamente homérico, pela ausência de traços psíquicos na constituição do homem. Não havendo a noção da alma volitiva individual em Homero, o que nele se denota a psyché é apenas sombra ou imagem, eidolon, do corpo. Mas aquele que se sacrifica de um modo dignificante, como pelo amor da sua pátria, “se eleva a um ser mais alto acima da existência comum”, resultando que “a pólis concede-lhe a imortalidade do seu eu ideal, isto é, do seu 'nome'”. (p. 125)
                Mas nesse ponto o sintomático é que a citação de Tirteu por Jaeger não se refere ao soldado caído, ao lado do qual a elegia, que dele registra a memória, “sublinha a figura do guerreiro vencedor”. A citação se refere somente a este último: “Honram-no jovens e anciãos, a vida oferece-lhe distinção e singularidade, ninguém se atreve a prejudicá-lo ou ofendê-lo. Quando chega à velhice, infunde um respeito profundo, e onde quer que chegue todos lhe dão lugar”. (p. 123)
               Ora, que a oposição construída por Jaeger entre estas duas estruturas antropológico-sociais é paralela à de Nietzsche, vemos pelo fato de que produz efetivamente uma genealogia da moral: “Só o crescente menosprezo pelo Estado, próprio das épocas seguintes, e a progressiva valorização da alma individual, que alcança o apogeu com o Cristianismo, possibilitaram aos filósofos tomarem o desprezo pela glória por uma exigência moral”. Desnecessário salientar o quanto Jaeger está assim vivamente induzindo à escolha. 
               Comentando a citação que vimos ter destacado de Tirteu, aduz: “Na restrita comunidade da primitiva polis grega isto não são apenas belas palavras. Esse Estado é realmente pequeno, mas tem na sua essência algo ao mesmo tempo heroico e profundamente humano. Para os gregos, e mesmo para toda a Antiguidade, o herói é, pura e simplesmente, a mais alta forma de humanidade”.
             O platonismo jaegeriano não é pois a religião da alma, inversamente à apresentação sintética de Goldschmidt. Ele é a depuração genuinamente grega, ou seja, “política”, da Paideia cuja origem é a kalokaghatia, o ideal do belo e bom formativo da nobreza homérica e conservado na organização da Polis espartana. Mas assim como exemplarmente contraposta à oposição nietzschiana de grego e “jurídico” judeu-cristão, posto que a Grécia geo-política se mostra ela mesma, de modo historicamente muito mais consequente, a origem dos dois vetores, a Paidéia de fato decide sobre ambos nessa questão do originário. 
               Como vimos, a antítese não atrapalha a generalização dos “gregos” ou até de “toda a Antiguidade” em favor do Estado cujo desenvolvimento ético se inicia segundo Jaeger, em Tirteu. Somente em Esparta, portanto, temos a preservação e a expansão do que é genuinamente “grego” em sentido primitivo. Esse status é porém ambíguo, o que explica a duplicidade das vias.
              Por um lado, é um só, a primitiva ou genuína Grécia é a nobreza homérida. Mas por outro lado, houve a clivagem da emergência da Polis, a organização da comunidade cidadã, e esse é o sentido de primitivo que concentra a religião do Estado como o “matiz político” que “a ideia da glória heroica guardou, aos olhos dos gregos”. 
                 Jaeger considera o “homem político” como um ser que inversamente ao objetivo da salvação, o tem na perfeição, possivelmente alcançada na “perenidade da sua memória na comunidade...”. Esse “homem político” nasce pois, em Esparta, e o vetor jurídico da individualização na Polis ateniense assinala um desenvolvimento irredutível ao seu.
            A transformação do político em Jaeger tem inúmeras conotações na ciência histórica e social. Ela permite conjecturar sobre a formação do nacionalismo alemão entre as duas guerras, de um modo menos prejudicado pela preminência de Weber. Vemos que a concepção de Jaeger salva o Estado do determinismo capitalístico que Weber conceitua opositivamente à “comunidade” primitiva. Esse determinismo ecoa nitidamente a kritikultur anti-estatal de Nietzsche.                      Mesmo que o próprio Weber, assim como seu irmão Alfred, pudessem estar interessados numa evolução da legalidade que libertasse o regime político do determinismo capitalístico, a oposição era a mesma que inspirava todos os anarquismos dessa época, e paralelamente o repúdio geral ao capitalismo de livre concorrência. Em Jaeger vemos reunidos ambos, o Estado e a comunidade, justamente em seu sentido suposto originário pela mentalidade culturalista da  época, isto é, não individualista. 
              Só do outro lado da oposição é que fica lotada aquela individualidade que Weber atrelou ao capitalismo como Estado contemporâneo suposto por isso burocrático-racional-legal. O capitalismo definido por Weber evita o problema da “superestrutura” inerente à definição marxista, na medida mesma em que preserva a conjunção de inteligência e modo de produção conceituada pioneiramente por Marx na sua noção de “praxis”. Porém assim coloca um problema historiador considerável, a aposta weberiana na ousada afirmação de que antes do capitalismo nunca houve formas impessoais de contrato, livres da hegemonia patrimonial de autoridade centralizadora e cuja representação era carismática, de tipo mágico ou religiosa. 
               A riqueza livre e circulante só seria possível no capitalismo contemporâneo, a geselschaft como mundo de inteligência, mais do que técnico-industrial, financeira-legal, mundo das letras de câmbio resgatáveis anonimamente, e centrado no modo da ação objetiva que caracteriza a empresa de negócios, inversamente aos modos de ação por tradição ou ritual.
              Seria bem esperável que os historiadores da Grécia levantassem dúvidas pertinentes à reserva da circulação de papeis à contemporaneidade, e particularmente Rostovtzeff nunca acreditou verdadeiramente nisso. Ele fala assim fluentemente do “capitalismo antigo” na era helenística. Não obstante a forma de governo ser centralizado, “o crédito e as atividades bancárias” tornaram-se extremamente importantes num mundo antigo unificado pelos costumes gregos, inteiramente isento de variação local, a partir da expansão desse capitalismo que tornou conveniente a adoção universal da língua grega unificada, o koiné. (p. 272)
               Sob o império macedônio, Atenas usufruiu de certa liberdade, até mesmo restaurando a constituição democrática, porém nunca liberta como um Estado independente. O domínio macedônio se agravou depois que ela tentou uma sublevação, aliando-se a Sparta e Egito, na guerra cremonídia do século III. Conforme Rostovtzeff, se a situação afinal estabilizou-se numa semelhança notável com o clima do quarto século, foi somente porque nele a regra era a guerra em vez da paz. (op. cit. p. 261) 
               A Macedônia estava sempre em guerra com seus vassalos e aliados gregos, especialmente as ligas Acaia e Etólia. Os Estados mesmos não tinham paz interna pois nas monarquias somente o rei absoluto conseguia abafar as lutas partidárias da nobreza, mas no segundo século a realeza não dispunha de grandes domínios territoriais ou exército forte, assim como no Egito e na Síria, respectivamente convulsionados por governos incompetentes e rebeliões internas.
              Sobre o capitalismo antigo, Rostovtzeff considera que as monarquias helenísticas, intensamente monetarizadas, haviam herdado as condições econômicas criadas pelas Cidades-Estado gregas. (p. 267) A Grécia tornou-se preponderante absoluta no comércio internacional do século III, mas logo depois Alexandria ficou com a posição central, tanto no comércio como na indústria. Na Grécia, Rodes e Delos tornaram-se proeminentes, destacando-se entre as Cidades-Estado que se tornaram prósperas nessa época, por terem ambas posição geográfica estratégica, situando-se nas rotas que ligam o Norte e o Sudoeste com a Grécia e a Itália. 
              Mesmo com a ascensão das capitais helenísticas como Alexandria e Pérgamo, a Grécia continuava tendo importância, e após referenciar as rotas que entre Ásia e Oriente Médio ligavam desde o Egito até a Índia, Rostovtzeff considera que “Em suma, o mundo helenístico torna-se um grande mercado controlado pelo mercador grego ou helenizado, e pelo fabricante grego. Até mesmo reporta que “o gênio grego” veio em auxílio das pretensões de expansão econômica de reinos como o Egito, sistematizando em manuais a pioneira tentativa de estabelecer uma agricultura em bases científicas, assim como a zoologia grega contribuía no aperfeiçoamento da pecuária.
              Em geral as realezas incentivavam empreendimentos dos gregos fixados em seus domínios. Se o capitalismo comercial e industrial antigo atingiu um porte tão proeminente, a questão de saber porque não resultou numa revolução da produção como na modernidade, parece subentender-se resolvida na observação de Rostovtzeff acerca da relativa pequenez das classes compradoras urbanas, comparadas à estabilidade das agriculturas nativas. 
             Ele não acusa assim o escravismo como a causa, ainda que fosse também equacionável. Sua perspectiva parece-me pois contrária à de Weber, posto que a diferença seria de grau e não de gênero. Mas também quanto à questão social o vemos, pois mesmo que o progresso na manufatura, agricultura e comércio resultassem numa classe média culturalmente homogênea, os conflitos derivados da crescente desigualdade de pobres e ricos, trabalhadores e proprietários, e mesmo de nativos e gregos, foram proeminentes e nunca resolvidos, conforme Rostovtzeff. As classes opostas são, como vemos, inerentes à articulação da cidadania, não ocorre menção a nietzschianas “revoltas de escravos” , como o que seria fácil ignorar ao modo de mero item inerente à manutenção da segurança pública no antigo regime. 
              Ao contrário, Rostovtzeff fala da “condição humilhada do povo que dá origem a relações hostis entre as classes altas e baixas, tanto na cidade como no campo. Essa hostilidade, portanto, já não se subsume ao conflito grego de nobres e plebeus, é propriamente de classe econômica,  toma a forma de greves e explode, de vez em quando, em "revoltas das populações nativas, revoltas muitas vezes lideradas por sacerdotes”, o que era o caso particularmente comum no Egito, “embora fossem, naturalmente, sufocadas pelas tropas mercenárias” - os soldados por salário que é uma invenção desse período (p. 278). 
             A era helenística conduz pois a questões sociológicas não inteiramente previsíveis pela acomodação da era anterior, não obstante haver relações indubitáveis como o próprio conceito do período, designado “helenismo” ou grecização cultural, denota. Sem dúvida, para Rostovtzeff, “a civilização da chamada era helenística é realmente grega”, seguindo a pauta do regime instituído na Atenas do quarto século, que tivera objetivo civilizatório pan-helênico. (P. 283)                 Mas Rostovtzeff permite observar que o problema é justamente este. Ao mesmo tempo que a Grécia influi mais do que na cultura letrada, na própria armação dos regimes e economia das monarquias helenistas, neles decorrem transformações sociais irredutíveis ao já conhecido, inclusive na Polis. Assim, a expansão do gênio grego acarretou um verdadeiro renascimento cultural no Oriente, entre o Império romano e o início do feudalismo, como na Persia, Índia, Armênia, Geórgia, e na gênese da era feudal, na Arábia. 
               Já a cultura do Império Romano se desenvolve a partir das bases culturais da Grécia do terceiro século. (p. 285) A deusa Tique, de Eutíquedes, em Antioquia, estatueta produzida em mármore, tornou-se o modelo popular de deusa dos ambientes urbanos. A boa fortuna sentada, segurando espigas de cereais, com a cabeça coroada, rosto simpático e confiante, e os pés sob o rio Orontes, representado por um menino nadando, está hoje restaurada segundo réplicas do original, no Vaticano, em Roma.
             Na Grécia particularmente, os conflitos sociais cresceram a ponto de interferir com o desenvolvimento interno das cidades, e as realezas helenísticas não conseguiam apaziguá-los. Rostovtzeff reporta assim que o caso mais conhecido é justamente o de Esparta. A filosofia helenística na Grécia havia suscitado um ramo de reflexão política que reduzia “o problema de riqueza e pobreza como uma questão de moral pessoal” (p. 280). Bréhier também o enfatiza, mostrando que gêneros de diatribes dessa época faziam personificar a pobreza e a riqueza competindo, endereçando-se ao receptor a fim de convencê-lo de serem cada uma delas o meio de vida melhor ou menos prejudicial independente das aparências. Segundo Rostovtzeff, a concepção da luta de classes, tanto já existe na Antiguidade, influenciando amplas regiões imperiais, como era produto das massas depauperadas, independente de especulações dos filósofos.
             Rostovtzeff aduz assim que em Esparta, com o acirramento da cisão entre a aristocracia e proletariado, o rico e o pobre, houve entre os próprios espartanos, além de periecos e hilotas, “crescimento de ideias comunistas e socialistas, a convicção de que Esparta havia sido outrora a terra onde o ideal do comunismo fora inteiramente realizado e também um ardente patriotismo que se recusava a tolerar a insignificância política do país”. 
             Após a vitória de Tebas contra Sparta, na batalha de Leuctras, que provou a superioridade da inteligência sobre a força devido ao êxito da estratégia de Epaminondas sobre a confiança na força bruta espartana, a situação econômica dos espartanos se deteriorara principalmente devido à libertação da Messênia pelo general tebano. Mas Sparta não chegou a ser subjugada pela Macedônia, ficando livre para apoiar rebeliões, que como vimos porém, relativamente a Atenas, nunca chegaram ao êxito.
                O rei Ágis IV de Sparta, no terceiro século, tencionou uma reforma geral nesse sentido, cancelando as dívidas dos cidadãos particulares e distribuindo as terras confiscadas pelo Estado a todos os cidadãos, espartanos (4.500) e periecos (15.000). Mas se a classe dominante apoiou a abolição das dívidas privadas, rejeitou a reforma agrária, e liderada por Leônidas, que entronizou em seguida, derrubou Ágis. Porém o filho de Leônidas, Cleômenes, realizou o plano de Ágis de modo muito ousado, utilizando-se da violência quando necessário, chegando a obter o apoio do proletariado das cidades gregas no sentido de unificação nacional. Porém encontrou por isso a resistência do rei macedônio, Antigono, que frustrou o plano.
                Em seguida, Nabis tomou o poder em Sparta, com intuito de realizá-lo, mas já nessa época Roma firmava sua superioridade política sobre a Grécia, e após Nabis,  Sparta abandonou o ímpeto reformista, deixando de ter importância na Grécia em geral.
              O cômputo de Rostovtzeff sobre a história grega define a situação nacional da Grécia sob o império romano como de total fracasso. Mesmo sendo a Grécia a fonte da cultura helenística, Pérgamo e Alexandria rivalizavam na posse das mais proeminentes bibliotecas, e o Museu (Lar das Musas) desta última foi a primeira sociedade cultural mantida pelo Estado, como se representasse uma instituição universitária em plena Antiguidade. (p. 302) 
               Vimos que Jaeger não considerava de modo muito diverso, posto que a seu ver não são deriváveis da forma política da Cidade-Estado grega, os regimes subsequentes. Se isso é algo evidente tratando-se dos impérios helenísticos e romano, excetua-se o tipo de militarismo peculiar aos espartanos, isto é, inversamente ao exército servir ao Estado, é este que existe em função do exército. E entretanto um juízo bem notável, pois relativiza a conexão da democracia ateniense, em termos do que teria ressonância com o moderno liberalismo, com o espírito genuinamente grego, que ele localiza outrossim, como vimos longamente, em Sparta.
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           Sparta e o platonismo       
         
             O intuito de Jaeger em sua própria época, que tipificou um impulso do pensamento de Estado tão peculiar no bojo da problemática da “civilidade” contemporânea, é sem dúvida de estabelecer uma conexão. Sparta, o único regime grego inteiramente voltado à guerra, não era tão isolada num meio de Cidades-Estado letradas e democráticas, se o heroísmo que ela logrou transformar em valor educativo num sentido cultural pertinente manteve-se como um ethos inerente à Antiguidade. Mas o ethos comunicável através dos séculos é irredutível à singularidade na origem. Na Antiguidade o valor guerreiro é uma questão sociológica e ética, mas em Sparta é um regime de Estado e um fundamento do direito. 
               E o principal na tese de Jaeger, a ligação de Tirteu ao platonismo, decorre dessa irredutibilidade postulada para o problema espartano na geopolítica grega.
              Já acentuei bastante a ligação que Jaeger estabelece entre Sparta e o platonismo, definida na parte mesma da Paidéia consagrada a Sparta. O regime estatal e o fundamento “legal” da época áurea da Lacônia foram recolhidos por Platão como um “tesouro espiritual” que fundamenta a sua filosofia. Assim o intertexto fundamental do platonismo não é a filosofia dos naturalistas, não obstante Jaeger ter mostrado o quanto a escola médica de Cós influencia Platão, assim como também as matemáticas. Mas sim os poemas patrióticos, especialmente Tirteu. 
             Pela tessitura dos poemas formativos, Platão chega, nas Leis, “à determinação de duas formas fundamentais que parecem representar a totalidade da cultura política do seu povo: o Estado militar espartano e o Estado jurídico original da Jônia”. (p. 107, 108) É verdade que ninguém estudou com tanta generosidade a ambos como faz Jaeger na Paideia, mas como vimos, a classificação nele tem consequências de ruptura radical na história política e cultural. Sparta torna-se o verdadeiro fundamento do Estado, a determinação jurídica deságua num processo de solvência do político pela "degenerescência" do individualismo. 
              Não há que separar ética, comunidade e Estado. O “político” em si é um Estado comunitário ético que se produz pela unidade educativa do militarismo como ideal viril do guerreiro. Como regime, a unidade educativa traduz a preservação dos valores formativos da nobreza originária, que assim evolui, generalizando-se como ideal da humanidade
              A Sparta de Jaeger, na era clássica da Polis grega, nada permite antecipar do reformismo proletário documentado por Rostovtzeff após a libertação da Messênia até aí escravizada, e a ascensão do conflito de classes típica da era helenística.
            A dependência do regime spartano à propaganda do escravismo nobilitante, que os poemas patrióticos veicularam, poderia induzir à questão do que aconteceria se Sparta perdesse o poder de dominação sobre os messênios. A julgar pelo texto jaegeriano somente, Sparta se desfaria como sociedade. Assim, como não foi o que ocorreu, podemos talvez aí deduzir uma lição histórica, ao contrário do dito popular de que a história nada ensina.

      A propaganda do regime espartano era menos de valores éticos, no sentido elevado e humanístico do termo, do que um expediente para assegurar um meio de exploração econômica. E quando a contingência mostrou-se desfavorável, foi fácil para Sparta, interiormente, mudar tão drasticamente, do escravismo para o comunismo, não obstante ter esbarrado com o obstáculo externo. Essa lição não apenas invalida a propaganda neototalitária como a imperialista info-midiática da atualidade, mas por igual, inteiramente o dogma marxistas das fases evolutivas dos modos de produção.

            Na parte consagrada a Platão, temos as mesmas consequências originais de Jaeger, Sparta como a preservação de um unitário sistema social da nobreza na origem, aplicadas à filosofia. Elas permitem a Jaeger introduzir significativa ruptura na história da recepção do platonismo, como ele mesmo reporta.
              A trajetória da recepção que ele recobre não se detém especialmente na subsequência feudal, e não obstante ter considerado a obra de Platão uma espécie de eixo de todo desenvolvimento posterior, é da tradução da “República” por Santo Agostinho na “Cidade de Deus”, em diante, recolhendo as consequências do neoplatonismo como o ápice de todo o devir do pensamento antigo, assim como a influência do místico alcunhado Dionísio Aeropagita, que a centralidade do platonismo se torna incontestável. 
                 O Renascimento é tratado em função dessa continuidade do feudalismo, em vez de qualquer verdadeira retomada da Antiguidade. O ensino de Plethon em Bizâncio é o referencial que se transmitiu de Constantinopla aos latinos do quatrocentos, o que significa que estes só teriam estudado Platão na perspectiva de Plotino. É compreensível que o interesse na recepção da modernidade capte mais a atenção, uma vez que a esta se associa de hábito um ambiente de total superação da metafísica. O texto de Jaeger obtém bastante mérito em informatividade ao mostrar não ter sido assim, e, bem inversamente, referenciar o cânon platônico nas correntes principais.
                Ele desenvolve a história do confronto dos platônicos do século XIX, cuja obra exegética se amparou nos progressos da filologia, com os românticos, especialmente Schleiermacher. Ambas as escolas manifestam em comum a exclusividade da recepção do platonismo em termos de teoria das ideias. Mas a aplicação da filologia determinou romper drasticamente com a posição inicial da cronologia dos textos platônicos. 
              O início dos estudos platônicos modernos praticamente deve-se a Schleiermacher, assim como a transformações dos parâmetros de estudos que conduziram “à descoberta do verdadeiro Platão”, conforme Jaeger. (p. 582 e segs.) Na verdade o modo como o expõe visa inverter a ordem de prioridades. Seria do platonismo de Schleiermacher que se origina a sua famosa hermenêutica, não o contrário. 
               A ênfase na característica aberta dos diálogos, não tendendo para um fechamento sistêmico, ao contrário do procedimento do século XVIII que consistia na depuração formal da arquitetônica metafísica como se considerava apenas qualquer obra de pensamento; bem de acordo com o romanticismo, o objetivo de captar a individualidade espiritual expressa na obra, considerando que ela desenvolvera-se em íntima conexão com a vida filosófica de sua época; e o critério que permitiria classificar os textos, de modo tipicamente platônico construídos por movimento vivo interlocutivo em vez de construção demonstrativa na gradação aproximativa. Por esse critério Schleiermacher os considerava numa gradação a certa meta ideal, como filosóficos enquanto apenas introdutórios, e os de caráter formal.
           Estes três delineamentos foram os meios que teriam permitido “do problema repleto de hipóteses, colocado ao exegeta pelas obras de Platão”, brotar “um conceito de interpretação novo e mais elevado do que aquele que até ali servira de base aos filólogos circunscritos à gramática e ao estudo da Antiguidade...”. 
              Não obstante ter considerado o platonismo o intertexto principal da filosofia posterior à produção do mestre, sublinha a filosofia alexandrina helenística como tendo desenvolvido “seus métodos à luz da investigação da obra de Homero”, e somente “a ciência histórica do espírito” foi a que “alcançou no séc. XIX o seu máximo apuro com a luta para conseguir compreender o problema platônico”. De fato, como Jaeger sublinhou, um dos mais difíceis problemas “colocados pelos escritos da Antiguidade” - bem inversamente, pois, à tradição do divino Platão como escritor de clareza clássica.
               Ora, a viragem neokantiana da filosofia, na transição cronológica ao século XX, coincide com a superação do critério hermenêutico romanticista pela contribuição de Lewis Campbell. O escocês que reaplicando critérios da filologia, propôs a pesquisa das variações estilísticas imanentes aos textos platônicos, mostrando assim características que eram comuns a três períodos definíveis. 
              Os diálogos de estilo aproximável às Leis, estas que sem dúvida foram obra de velhice, foram identificados nessa periodização mais tardia. Invertia-se desse modo o cânon romanticista, provando-se “serem obras maduras, correspondentes à sua senectude, vários diálogos platônicos por ele considerados primeiros e introdutórios”. (p. 585) Mas valorizavam-se por isso, como a obra madura, os diálogos em que Platão questionava ou submetia a teste a sua própria teoria, como o Parmênides, o Sofista e o Político. Ao serem puxados para o centro da controvérsia, mostraram-se coincidentes ao espírito da época. Frente à superação da voga do idealismo romanticista, o retorno ao kantismo que se seguiu representava “uma atitude de introspecção crítica”, com exclusiva atenção ao problema do conhecimento. 
             É interessante para a história do neokantismo, especialmente na sua interconexão à carreira de Heidegger, o modo como Jaeger acentua, ao contrário do aristotelismo professo deste último, o interesse da época em refutar as críticas de Aristóteles à teoria das ideias platônica. Não obstante, para Jaeger os neokantianos assim apenas seguiam a opinião aristotélica da teoria das ideias como cerne do platonismo. 
              Em seguida reporta ele o interesse suscitado pela questão da autenticidade das Cartas de Platão, que era tradicionalmente negada como textos apócrifos, sabendo-se que existiam de fato, na massa da obra. As Cartas eram rejeitadas em bloco no status de autenticidade desde o século XVIII, devido a ser indubitável constatarem-se nelaspeças e fragmentos falsos”. Porém desde a atenção de Eduard Meyer ao texto, devido à importância histórica do conteúdo das cartas, o problema se recolocou, e Wilamowitz logrou provar a autenticidade das cartas sexta, sétima e oitava, as mais importantes da coleção. 
              Ora, se desta vez não fora a perioridização, mas a crítica da autenticidade dos textos, o afetado pelas descobertas filológicas, é em que Jaeger pessoalmente se engaja. Ele não esperou pela prova da autenticidade das cartas para refutar profundamente a opinião neokantiana e aristotélica sobre o platonismo como estritamente a ontologia das ideias. A prova apenas apoiou o que ele mesmo já havia concebido, e desde a época em que não acreditava na autenticidade. Mudou de opinião a propósito, não apenas pelo brilhantismo de Wilamowitz, mas por convir que a autenticidade do conteúdo das cartas apenas calhava bem com o que já havia deduzido de seu estudo minucioso e paciente dos outros textos, (p. 587). 
               A seu ver, pois, o nexo da interpretação de Platão como filósofo das ideias com a reserva lógica dos problemas a ele ligados, era um erro explicável pelo fato de que na velhice do mestre, a controvérsia no interior da Academia incidiu amiúde sobre a questão ontológica, raiz da perspectiva aristotélica a propósito do platonismo. Mas diálogos como o Críton e o Gorgias, assim como o grande texto da República, seriam bastantes na concepção de Jaeger para mostrar que a teoria das ideias não era a única raiz do seu pensamento filosófico, e a produção das Leis, mesmo nesse período tardio, o comprova. 
            As cartas autênticas mostram que o envolvimento de vida de Platão era político, e essa era a tese que Jaeger estava esposando sobre o platonismo na história da filosofia.
            Conforme testemunha ele, “a concepção sobre si próprio que Platão exteriorizara” na carta sétima, a princípio desprezada por Jaeger, apoiava “em todos os aspectos a interpretação da filosofia platônica” a que ele próprio chegara, “à margem das cartas”, pelo trabalho exaustivo do exame “de todos os diálogos do autor” (p. 589)
                A propósito da relação de biografia e filosofia, expressa que “Com efeito, a vida e a obra são nesse pensador inseparáveis e de ninguém se poderia afirmar com maior razão que toda a sua filosofia não é senão a expressão de sua vida e esta a sua filosofia. Para o homem cujas obras fundamentais são a República e as Leis, a política era não só o conteúdo de certas fases de sua vida, durante as quais se sentia impelido à ação, mas também o fundamento vivo de toda a sua vida espiritual”. (p. 588)
           Mas o essencial a partir daí se torna o que Jaeger compreende como “a política”. Um cotejo desse trecho com o que ele dissera antes de Sócrates parece o mais oportuno para ilustrar o problema que podemos enunciar em torno da cisão habitual de ética e política. 
            Se o que vimos até aqui foi que Jaeger posicionou a Paideia em torno da solução espartana do Estado como formulação antropológico-social votada à supressão dessa linha divisória, tendo na educação precisamente o meio de o fazer, e que para ele o platonismo é a sistematização conceitual da solução espartana, como Jaeger lida com a definição costumeira de Sócrates como introdutor da ética na filosofia?
             Sócrates não é de fato por ele apresentado como alguém cujo conflito com o Estado refletisse um objetivo consciente, ao menos até onde se pode predicar algo assim de um grego: “Não se julgue porém, que à finalidade política da cultura, tal como os sofistas a conceberam, ele opõe o ideal apolítico da pura formação do caráter. No objetivo, como tal, não havia razões para tocar. Numa polis grega este objetivo tinha de ser sempre e necessariamente o mesmo”.                                          Porém, se o desprezo da política o teria inviabilizado como educador em Atenas, “a grande novidade que Sócrates trazia” era visar “na personalidade, no caráter moral, a medula da existência humana, em geral, e o da vida coletiva, em particular”. (p. 540) Se ele pensa o social é apenas por uma via interior (p. 535, 6) cuja viga mestra é a certeza do saber (p.564).
               Poderíamos julgar que aí encontra-se o nexo desejado, porém o que se expressa é que Sócrates não faz obra de estadista, não sendo atribuível a ele a “politeia” que Platão constrói na obra, muito menos a postura do estadista apresentada no Gorgias.  
           Sócrates não participa diretamente da vida política, não obstante influenciar politicamente os outros, e o saber socrático é definido como phronesis, prudência, só tendo um objetivo, o conhecimento do bem (p. 568). Ele não preconiza a vida do "xenos pantacou", o “estrangeiro por toda parte”, que Aristipo personificava como a melhor solução no conflito de indivíduo e comunidade (p. 575). Mas sua adesão à vida na Cidade é refletida por uma atitude suscitada pela situação da burguesia ática, invadida por uma multidão de influências de todo tipo, no seio da qual Sócrates aparece “qual Sólon da vida moral”, sendo nesse campo da ética que ele percebe que o Estado e a sociedade estão perturbados. (p. 512)
              Não obstante a referência a tal profusão, Jaeger noticia sua participação juvenil no círculo de Cimon que tipificava o partido espartano na aristocracia de Atenas, assim como a sua invocação “do que há de espartano no espírito do povo de Atenas” contra o pessimismo político da época (p. 545).  Porém é na paidéia, conforme um novo conceito contrário a toda mera aquisição de habilidades técnicas, que Jaeger estabelece a contribuição de Sócrates. O feito de ter desviado a finalidade prática dos sofistas, que era formar homens do Estado e dirigentes da vida pública, reestruturando a conexão da cultura espiritual com a cultura moral (p.540) de modo a elevar a Paideia ao máximo que se poderia fazer dela, sua postulação como “destino espiritual e moral do Homem". Nesse sentido ensinando que “O Homem, assim concebido, nasceu para a Paidéia. Este é seu único patrimônio verdadeiro”. (p. 571) 
               E como todos os socráticos convergem nessa concepção, é razoável concordar que deve ter sido originalmente ensinamento de Sócrates. Jaeger convém que inúmeras citações o poderiam ilustrar, porém contenta-se em narrar a história do megárico Estílpon. Tendo Mégara sido conquistada por Demétrio Poliorcete, este quis demonstrar boa vontade ao filósofo indenizando-o do saque, solicitando assim uma lista das coisas de que fora ele privado. Ao que Estílpon respondeu altivamente que “A Paidéia ninguém tirou da minha casa”. (p. 572)
          Compreendemos, em todo caso, que o problema da definição do ético e do político em Sócrates excede a postulação inicial de Jaeger sobre dever-se a que ele não se dedicava pessoalmente à política, embora formasse homens que tinham objetivos políticos, a exemplo de Alcibíades. Envolve algo mais, inerente ao conceito mesmo. A cisão aparece, pois, como algo estranho ao mundo grego. Se Aristóreles é a quem se deve a atribuição de Sócrates como pensador ético, o erro seria considerar a ética como o oposto do político assim como nós modernos podemos fazer desde que compreendemos a subjetividade, e nela a esfera dos valores éticos. Na Antiguidade, os valores do indivíduo representavam apenas a parte relativamente ao todo da comunidade, onde se processam as relações políticas (p. 559).
                Na verdade o problema é mais complexo pelo fato de ser praticamente inexequível decidir sobre até que ponto Sócrates não se confunde com o que lhe atribuem Xenofonte e Platão.
          Para alguns, como Heinrich Maier, é Platão e não Sócrates quem criou a teoria das ideias, limitando-se o mestre de Platão a ser “o profeta da autonomia moral”. Mas para outros, em face das enormes dificuldades dessa tese, o provável é que em Sócrates já estava se defendendo a teoria das ideias. (p. 561) 
              Similarmente, o cromo tradicional de Sócrates introdutor do conceito esbarra com a questão de saber por que seu discípulo Antístenes se torna em seguida um mestre da simples ética e parênese, mas limitar Sócrates a estas últimas torna inexplicável a carreira do seu discípulo Platão. (p. 562) Ao ver de Jaeger, tudo isso apenas contribui para afirmar que Sócrates se esforçou para “penetrar na essência da moral por meio da força do logos”, e, como vimos, ele considera que não haveria sentido na profissão de fé socrática na virtude e sanidade política sem sua convicção inabalável do saber como do Bem, mesmo que em termos do que se deve ter por objetivo desde que se o compreenda como “o” objetivo da ética e da política. 
               Não portanto, como algo adquirido, mas como objetivo, esse telos em que desaguam todos os caminhos das aspirações humanas. Uma outra figuração simbólica do bem é o alvo (skopos) ao qual se mira a seta, acertando ou não. Em todo caso, o Bem é um movimento orientado, que “empresta à vida um outro rosto”, o objetivo voluntário do Bem “torna-se unidade interna, ganha forma e tensão. O Homem vive continuamente em guarda "com os olhos no alvo'”, conforme as palavras de Platão. (p. 570)
              Ao que parece, o trecho decisivo no exame de Sócrates, quanto a este outro problema que é a exegese de Platão, é aquele em que Jaeger reflete sobre a origem do conflito do Estado com a filosofia, tal como se expressou no processo contra Sócrates: “No fundo, o conflito com o Estado nasce para a filosofia e para a ciência, a partir do momento em que a investigação se exerce sobre a natureza das 'coisas humanas', isto é, sobre o problema do Estado e da aretê...”. Isto é, quando a investigação decorre dessa questão “como razão normativa”. (p. 573)
            Nós o vemos, é forçoso que o Estado o interprete como intuito de substituí-lo no mister de formador das leis de conduta. Porém, conforme Jaeger, “Ao por nas mãos da filosofia o cetro do seu Estado ideal, Platão compreendeu e procurou eliminar a necessidade deste conflito entre o Estado, no qual reside o poder, e o filósofo, que investiga a norma suprema do comportamento.”
             Ora, transpõe-se assim evidentemente o limite do Bem e do saber que o faculta, como objetivo, o que a Antiguidade na figura de Sócrates pôde alcançar em termos de ideia reguladora, o que só a modernidade com Kant realmente expressou. Mas parece irônico que no momento em que a expressão se realiza, em vez da separação total de Estado e filosofia, na autonomização da ciência e laicização do Estado, ocorre a emergência pós-kantiana das ciências humanas que se tornam o suporte legitimável das decisões do Estado. Na Antiguidade, Platão o prefigura ao cruzar a fronteira e enunciar decisivamente as normas de um Estado ideal, não só definidas pelo saber filosófico, mas encarnando o poder monárquico a personificação real da filosofia.
               Já tratando do platonismo, Jaeger justifica a sua interpretação dele como uma filosofia política, que é também a interpretação de Adorno e Horkheimer para declararem-se quanto a isso platônicos, e uma verdadeira antropologia cultural: “Sócrates apontara a meta e estabelecera a norma para o conhecimento do bem. Platão procura encontrar o caminho que conduz a essa meta, ao colocar o problema da essência do saber. Passando pelo fogo purificador da ignorância socrática, sente-se capaz de chegar mais longe que ela, ao conhecimento do valor absoluto que Sócrates buscara, e de por meio dele restituir à ciência e à vida a unidade perdida”. 
              Também revelador dessa justificativa é a sentença: “A história da paidéia, encarada como a morfologia genética das relações entre o homem e a polis, é o fundo filosófico indispensável no qual se deve projetar a compreensão da obra platônica”, na medida que uma explicação do conceito do político que anima o objetivo e o conteúdo essencial da filosofia platônica, Jaeger considera que só pode se desvelar através dessa história. (p. 590) Sobretudo através do ponto de inflexão, nela, que representa a transformação socrática, a paidéia tornando-se a finalidade do humano.
              Ora, como vimos igualmente, a história da Paideia até aí já havia tido o seu sentido encontrado e definido na configuração da Polis espartana, paralelamente à definição da monarquia como a forma pura da filosofia. Impõe-se a indagação sobre como a teoria do Estado em Platão, que em consequência da interpretação de Jaeger demarcada nesse trecho, deve culminar todo o encaminhamento temático em torno dos diálogos por ele estudados na Paidéia, reflete esse sentido. 
               Mais uma vez repetindo que Jaeger prefixou estritamente a ligação do platonismo como uma filosofia espartana do Estado ao longo do seu exame da formação daquela Cidade-Estado. O problema que aí vemos é o contraste aparente dos princípios colocados.
             Todas as referências a Sparta em Jaeger, seja como fundamento de Estado ou pela conexão intertextual Tirteu-Platão, embasam uma concepção aristocrática de vida, onde pois a igualdade como conceito político não existe - ao mesmo tempo que como vimos, Sparta teria praticado uma cidadania onde todos eram por igual aristocratas. Se Sparta comunizou o ideal da nobreza homérida, foi apenas porque como grupo subjugou um outro, o messênio escravizado, desigualdade na qual Tirteu baseou explicitadamente o seu discurso construído de superioridade racial que funcionava como a instrução moral e política do Estado espartano.  E, independente disso, mesmo no interior do grupo dominante o regime instituía hierarquia rígida, com nada que pudesse se assemelhar a uma democracia. 
       Aqui é como se Nietzsche na sua oposição passional do Senhor contra o escravo, pudesse ter lido a Paideia de Jaeger para reproduzir o ideal espartano da hierarquia social contra o liberalismo político, aristocracia contra democracia, ou como se Jaeger houvesse grecizado Nietzsche radicalmente, e de um modo mais que irônico, efetivamente exegético, o tivesse tratado pelo nome de Platão. 
        O que resulta podermos reconfigurar como trajeto nietzschiano do simbolismo ao pós-estruturalismo, o período histórico de um platonismo dissimulado ou não, que portanto compreensivelmente culmina na ditadura imperialista da técnica planetarizada como dominação info-midiática na atualidade. A oposição senhor/escravo define um inconsciente geopolítico do imperialismo, ele próprio dissimulado como meta-relato do progresso social ou modernidade. 
      Na verdade, ulterior àquelas contradições, naquele ponto em que Jaeger baseou em Platão a dicotomia das formas estatais fundamentais, como o militarista dórico e o jurídico jônico, (p. 107, 108) reside um efeito de discurso. Na pressão do contraste opositivo que mapeia como um desejo a estrutura profunda da Paidéia, a introdução do estudo sobre Sparta, cuja centralidade no imenso texto é aí marcada, como constatamos, é feita como de um contrário num par. Após o que, o estudo minucioso de Solon, como da educação no Ethos da lei democrática, é exemplar, porém não atrapalha a linha principal das reflexões, sobretudo quando devem abarcar a guerra do Peloponeso e o trânsito ao século IV, a qual está em total contradição com o fundamento dicotômico. 
             Nessa linha, a demonstração histórica da montagem da democracia, como ressaltei, é uma longa redução ao absurdo argumentativa, construída com os fatos do fracasso na guerra mas também com interpretações da cultura conforme a inflexão da dramaturgia até o extremo individualismo de Eurípides, de modo que a inferência no interior da Paideia deve fechar, como um mecanismo na mente do leitor, qualquer saída para um dos opostos no pressuposto par, restando apenas de socialmente exequível o modelo estatal espartano.
           O regime estatal democrático é aparência de sociedade, conforme Jaeger, mas de fato é o contrário da sociedade possível, conduzindo à anarquia e ao caos de átomos sociais individualizados e imiscíveis, em confronto permanente, tanto entre si como com uma lei incapaz de representá-los na sua perigosa e não sublimada diferença. Aqui seria oportuno indagar se essa opinião é idiossincrática a Jaeger, ou reflete um senso comum da época culturalista europeia. 
           Na democracia, pois, a educação não é uma, de fato e de direito. A  unidade sendo o que fundamenta a cultura como sistema na metodologia culturalista. Como um dogma de liberdade irrestrita, segundo Jaeger, a educação na democracia mostra-se incapaz de fornecer aos sujeitos os limites de conteúdo que definem para ele os seus deveres socialmente estabelecidos, assim como seu papel e lugar num cosmos político.
             Por outro lado, se o trecho sobre Sócrates e o peso considerável da extensíssima parte reservada ao estudo do platonismo na Paidéia, deveriam ser o corolário dessa demonstração por reductio ad absurdo da liberdade ao caos como da coesão à anomia, o que introduz a visada de método jaegeriano é uma transformação da paidéia, operada em Sócrates, não uma continuidade perfeita. Mesmo se é Platão quem eleva a nova percepção da paideia ao estatuto de ciência política, fica em suspenso o verdadeiro referencial definido como fonte do platonismo, a paidéia de Tirteu ou a de Sócrates. Podemos notar como ambos são antitéticos por esse curioso intercurso aristofânico da revolta do popular ateniense contra a erudição socrática, enquanto de fato era Sparta a iletrada. 
              Mesmo que a intenção fosse julgar o platonismo como filosofia política, e produzindo-se na junção de ambos, o problema só se manifestaria com mais força. O contraste pois é total entre, por um lado, o particularismo espartano do grupo dominante como ethos do respeito pátrio a partir de sua definição como elite da força, com a força sendo o valor unitário da educação militarista patriótica; e, por outro lado, o universalismo da paidéia socrática em termos de telos existencial do ser humano, na qual a realização é apenas o ter-se atualizado das virtualidades inatas das almas particulares, realização que a define, e ao educador, como exclusivo “serviço de Deus”. (p. 528, 577)
              A cena está assim montada. Qualquer razoável conhecedor da história da filosofia poderia inferir o resultado hegeliano, se o problema é posto com tanta clareza, como da antítese histórica do universal e do particular. Porém a lição de Jaeger é de grande alcance, pois o que ilustra é na verdade como Hegel estava sendo ao mesmo tempo ultrapassado e conservado na era do funcionalismo. Jaeger o expressa sem sombra de dúvida, pelo que podemos apreender como de fato eivada de consequências a sua aparentemente ligeira referência à total ultrapassagem do “idealismo alemão” metafísico no período de emergência do neokantismo (p. 585).
             Um resultado estritamente da conciliação de particular e universal, não poderia definir qualquer atualidade do platonismo, como de qualquer sistemática conceitual anterior. O particular seria caso do universal num sentido bem preciso, sendo um momento histórico dele, ultrapassado necessariamente pela lei evolutiva que o reconceitua, sendo essa transformação conceitual a “modernidade”, em sentido adjetivo, na História. Mas o que Jaeger referencia de Hegel, nesse ponto em que se trata de entender o trânsito de Sócrates a Platão, pela atribuição exclusivamente a este da problemática do Estado, é que a mesma superação do indivíduo abstrato na história expressa a filosofia de Hegel, porém assim a ela contrapondo-se a evidência de que sua verdade já estava escrita na Antiguidade pelo platonismo: “Foi nem mais nem menos que Hegel quem negou à razão subjetiva o direito de criticar a moral do Estado, que é por si a fonte e a concreta razão de ser de toda a moral sobre a Terra. Eis um pensamento totalmente inspirado na Antiguidade e que nos ajuda a compreender a atitude do Estado ateniense para com Sócrates.” (p. 574) Heidegger também endereçou a crítica a Hegel por ele conceber a modernidade como totalmente inantecipada pelo gregos, afirmando inversamente que os gregos eram o que restava por pensar na modernidade. 
             O que os atenienses não comprenderam, segundo Jaeger,  foi apenas que Sócrates não desprezava, como “um iluminado e um exaltado”, o “Estado tal como era”, sem militar factualmente pelo “Estado como devia ser”. Assim, conclui Jaeger, “A esta luz, é o Estado decadente”, como de Atenas na época de Sócrates, “que aparece como o verdadeiro apóstata e Sócrates já não é um simples representante da 'razão subjetiva', mas antes o servo de Deus”, conforme Platão na Apologia 30 A, “o único que pisa terreno firme em meio a uma época vacilante”.
             Mas como se faz o trânsito da reação a um estado de coisas politicamente corrompido, e a transformação do homem numa encarnação endeusada da verdade, assim situando a esta última contra o direito racionalmente constituído, isto é, pelos procedimentos que reúnem as instituições da negociação pública - para assim considerar a razão a personificação deificante em si mesma? 
             É, pois, o trânsito da noção socrática de serviço pessoal de Deus à concepção platônica da "Politeia" – o termo pelo qual se traduz a "República" de Platão – de que se trata na Paideia. Inversamente a tratar Sócrates como o hegeliano herói transgressor do seu tempo, a favor de um tempo que virá. 
            As relações de Platão com a ciência grega, especialmente as matemáticas e a medicina, e o papel que ela tem na Paideia, Jaeger tratou acuradamente. A propósito, ver meu blog "idealização e ciência na contemporaneidade". Porém como já constatamos,  por mais que tenha registrado a importância da ciência na sua avaliação do pensamento platônico, atribuiu ao problema político o lugar central. 
              A Grécia que Jaeger  considerou caduca como ideal de Estado no grande desfecho da Paideia, não deixa dúvida, para quem de fato a leu. É apenas a efetividade cindida de uma Grécia fascinada pelo processo dissolvente da Polis ateniense. Já a Grécia como manancial de um ideal de Educação apto a modelar a verdadeira aristocracia espiritual, que ele julgou exemplificada na unidade militarista do ethos espartano, é o que Jaeger pretendeu que os leitores da Paideia compreendessem como a mensagem do seu platonismo. 
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