O culturalismo oligárquico: um estudo sobre Werner Jaeger
Eliane Colchete
espaço do blog reutilizado; texto escrito em 2017, postado em 2019; este
blog é oferecido ao público em geral, porém de conteúdo adulto,
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porém veiculando minha criação independente, não subsumida a
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Rostovtzeff
(“História da Grécia”Rio
de Janeiro, Zahar, 1983), cuidou
do que poderiam ser os aspectos materiais da guerra do Peloponeso, naquilo em
que puderam deflagrar o confronto.
Havia
assim uma questão puramente circunstancial, a disputa pelo controle
do comércio com a Itália.
O pivô da guerra do Peloponeso foi a necessidade da decisão espartana a propósito da
aliança que Corcira, “uma
abastada colônia de Corinto e a ponte natural
entre a Grécia e o
Ocidente”, declarou ser sua intenção afirmar com Atenas. Mas isso
implicaria retirar de Corinto a “última oportunidade para represar
o fluxo do comércio
ateniense para o Ocidente”, e de fato transferir “o controle da
rota comercial ocidental, que era dirigida pelos portos da Corcira,
para as mãos de Atenas, porque a presença da frota ateniense
naqueles portos passaria para Atenas todo o comércio italiano e
siciliano”.
Por outro
lado, havia a questão da península Calcídica, que Atenas poderia
controlar completamente se superasse a resistência de Potidéia. Mas Rostovtzeff não explora suficientemente os motivos pelos quais
a decisão de Sparta não equacionou as vantagens que ele mesmo
reporta, a propósito da supremacia ateniense na Grécia: “Por mais
egoísta que pudesse ser” a política ateniense tornou o mar
garantido para os comerciantes e concedia vantagens aos seus aliados
em sua predominância comercial.
A decisão espartana pela guerra nem
era de fato muito segura quanto às chances de vitória. Ao cabo da guerra, Sparta devolveu as cidades gregas da
Ásia Menor, que Atenas havia libertado, à sua aliada, a Pérsia.
Até a vitória de Tebas contra a vencedora dos atenienses, a
oligarquia estava restaurada na Grécia inteira, pelo domínio dos
espartanos. A vitória de Tebas assinalou-se num quadro em que o anseio
pela autonomia já alcançava os persas eles mesmos, segundo Rostovtzeff. Na subsequência dos fatos, porém, o mundo antigo permaneceu sob o antigo regime, como se sabe sobejamente.
Mas se a
questão do regime mostra-se assim preponderante para uma história
que não quisesse fragmentar-se numa multidão de fatos comezinhos,
vemos que ela alcança magnitude considerável na reversão de
qualquer pressuposto da “Grécia” como mero reflexo das
liberdades democráticas e conquistas do espírito ateniense.
Jaeger
define pois, nada menos que o platonismo nessa reconceituação geopolítica
dos estudos gregos. Se não foi o que de fato marcou época na
recepção da grande obra jaegeriana, o presente da Globalização
imperialista como horizonte futuro das obras de Jaeger e Snell é
bastante irredutível à trajetória que elas, em sequência, puderam comunicar, desde a aposta dos anos trinta na supremacia oligárquica
ilustrada até a confiança no liberalismo burguês do pós-guerras.
Otimismo que poderia explicar a oclusão da temática principal do
grecismo jaegeriano na recepção historiadora, mas se examinarmos bem o sentido do grecismo de Snell, assim como também da escola francesa estrutural como em Detienne, Vernant e outros, vemos que o liberalismo burguês e a oligarquia ilustrada mostram-se bem aparentados. A permanência da mentalidade do regime aristocrático na Grécia da Polis é o motivo, questionável a meu ver, que conservam porém todos esses referenciais.
II
O estudo genealógico de Sparta, como força constante do impulso
civilizatório complexo que abrange a heterogeneidade histórica
enfeixada na rubrica do “Ocidente”, como se pode perfazer a
partir da orientação original de Jaeger na "Paidéia" (São
Paulo, Martins Fontes, 1994), é algo inverso a qualquer
impressão inicial de resumir-se à fácil reconstituição da
influência da ideologia da força bruta. Isso equivaleria a
instituir o desenvolvimento dos estudos na dependência de um esquema
de dicotomia simples, assim a história de Sparta sendo paralela e
diferente da história das cidades gregas harmonizáveis com o modelo
ateniense.
Mas o que a leitura mais atenta constata é que o
estabelecimento mesmo do modelo na exemplaridade histórico-cultural
ateniense está interligado ao enigma espartano. Uma vez que se trata
de compreender, inicialmente, a transição do mito à laicização
da cultura, filosófica, científica e estética, transição esta
que tem no apogeu ateniense a completa realização, o significado do
mito precisa estar bem conceituado, mas nele o que se visa apreender
habitualmente é a unidade helênica, do regime anterior à Polis e
posterior ao império micênico.
O regime arcaico é assim, por um lado, já “helênico”, composto
consequente à invasão e fixação do ramo dório, cujo tipo
concentra-se em Sparta, enquanto o jônio se estabelece em Atenas e
Ásia Menor, com o eólio em porções específicas mais ao norte. Estes ramos são
qualificados na história cultural. Em Jaeger, história que sabe
combinar de modo mágico os aspectos inteiramente antitéticos da
ruptura mais radical e da continuidade inquebrantável à origem
homérica. A lírica eólia é o componente inicial
pós-aristocrático, a filosofia e a liberdade política jônias são
como que a consequência. O que cabe a Sparta?
Jaeger se destaca
assim como praticamente o único referencial que o reconstitui e
integra na história cultural subsequente. Resulta uma ironia sem igual a sua
renúncia a considerar as escolas pós-platônicas elementos
inerentes à Paideia grega. De fato ele é o único que explica, por
essa inclusão de Sparta, a subsequência ao século clássico do
apogeu ateniense.
O platonismo, que dela é a consequência
manifesta.
E, quanto ao conteúdo recalcado das escolas helenistas,
como plenitude da transformação religiosa da Fortuna, que
aprendemos alhures à exemplo de Bréhier, já estão delineadas como
frutos do que a democracia pôde produzir, desde
Eurípides.
Aliás, aqui seria oportuno aprofundar o contraponto de Jaeger e
Snell, destacando que ao contrário deste em "A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu" (
São Paulo, Perspectiva, 2009), Jaeger na "Paidéia" estabelece em
Eurípides, inversamente a Calímaco, a influência futura da Grécia
Antiga. Se Eurípides é “o compêndio da
individualidade moderna”, seria importante agora
precisar em que sentido Jaeger assim vaticina: "descobrimos na sua
arte um surpreendente pressentimento do futuro. Vimos que as forças
que colaboram na formação do seu estilo são as mesmas que formarão
as centúrias seguintes: a sociedade burguesa (mais no sentido social
do que político), a retórica e a filosofia.” Mas é nesse ponto,
onde Jaeger constitui um pórtico ao mais alto elogio que já se fez
a algum ser humano, este que logo trataremos de referenciar, que ele
institui o que poderia ser o ponto de transição para aquele outro entorno, relativamente a Atenas clássica, que é porém não o
duvidoso cosmopolitismo helenista, e sim Sparta como a intimidade
real da Grécia.
O pórtico, pois, antes do elogio. De fato, na vocação futurista de
Eurípides reside algo além a toda positividade daquilo que tem
seguimento após si. As forças do seu estilo, “instilam no mito o
seu hálito", que porém Jaeger define desmitificador. (p. 412) É nesse ponto exato, inversamente à filosofia ou à mudança do regime, que
o mito deixa de ser a unidade compositiva do
espírito grego, segundo Jaeger. Assim todo o peso da crítica contra
Eurípides, acumulado pelos defensores do mito como da tradição
grega, deixam de ter importância. Eurípides é o introdutor de um
novo mundo, o helenismo e a modernidade – mas assim
tautologicamente já não um mundo somente grego.
O paradoxo histórico aí
construído é notável. Se Eurípides é o dramaturgo por antonomásia, o que teria sido para a reconstituição
histórico-social e cultural da Grécia, a civilização ateniense,
como culminância da Polis, que pelo espírito do teatro se
constituiu e aí se reunia – uma vez que a culminância dessa
realização é ao contrário, a ultrapassagem definitiva da fronteira geopolítica? O elogio, agora. “O prejuízo
causado por Eurípides ao teatro ateniense é compensado por sua
incalculável ação sobre os séculos seguintes. Foi para eles o
trágico por antonomásia, e foi principalmente para ele que se
construíram os magníficos teatros de pedra que ainda hoje admiramos
como monumentos da cultura helenística”.
Todo o teatro deste mundo, helenístico e moderno, é pois um único
monumento a Eurípides. Que elogio a um poeta poderia sobrepujar
este? Porém, como numa peça barroca, tecido sobre um fundo de
derrisão. Não só se trata de um trabalho do negativo. Não é só
o negativizado, o teatro ateniense, o mito, aquilo que está em
causa. Isso seria trivial, num percurso de laicização e
cientificização das mentalidades. Ocorre aí uma passagem ao
limite, é todo o percurso da laicização e cientificização que se
devota ironizado como o referencial ateniense. O helenismo não é,
definitivamente, a continuação da cultura grega. Mas por que a
própria cultura grega não se confunde com o que continua como o
teatro de Eurípides, no helenismo. Que referência ao fato de Eurípides ser grego, poderia restar compreensível?
Se as contribuições eólia e jônica se complementam assim numa
suprema ironia da história, o deslocamento relativamente à Grécia
é realizado – como só poderia ser – pela resolução do enigma
espartano. Na Grécia, o desenvolvimento da questão do trânsito do mito
religioso à cultura humanística abrange um fator de mudança e um
fator de conservação.
O regime arcaico é por um lado, já
“helênico”, repetindo, composto consequente à invasão e fixação do ramo
dório, cujo tipo concentra-se em Sparta. Mas também, sendo um
regime não diferenciado apenas pelo único fator de peculiaridade
destacável na História Antiga, a Polis letrada e democrática,
resta o fato do regime teocentrado grego não se deixar confundir
com a realeza típica dos grandes impérios ou mesmo pequenos reinos
fortemente centralizados, pois, se fosse facilmente confundível, não
haveria propósito na questão acerca dos elementos transicionais do
mito ao pensamento humano. Teria havido apenas uma ruptura total, não
podendo-se configurar a mesma rubrica do povo grego, mesmo preservada
a heterogeneidde dos seus fatores constitutivos, como Sparta e
Atenas.
Assim, entre os fatores de ruptura e permanência que integram a
questão possível da transição devido à peculiaridade do
feudalismo aqueu e homérico, a organização do Estado espartano desde a
formação da sua Polis deveria oferecer a extração mais genuína
da instância da permanência. O referencial da mudança se
compreenderá porém relacionado ao substrato, ao “que” muda,
terá elementos novos mas moldados pela conformação da origem, e,
quanto a esta, onde não ocorreu mudança alguma se poderia
considerar o substrato. Ainda assim, essa dicotomia simples é apenas
um erro crasso. Sparta é uma Polis, portanto sua formação é
exemplar da ruptura para com o “sistema de governo tipo clã”, na
expressão de Rostovtzeff, (op. cit. p. 89) típico do período das
invasões dórias e fixação pós-micênica, em que já havia a
descontinuidade étnica mas conservando-se o panteão
homérico atribuído aqueu.
Na
atualidade a questão da descontinuidade ou
identidade
cultural
entre
o império
micênico aqueu do segundo milênio e
os
povos helênicos oriundos das invasões dórias que começam em 1200
ac. e
instauram a sociedade grega,
já não se limita à
prova da memória.
A
tese
da descontinuidade
se garante a princípio pelo mero fato da escrita aqueia, o linear b,
que está hoje decifrado, não ter se conservado na Grécia. A Idade do bronze
micênica
foi derrotada pelos dórios da Idade do Ferro, mas estes eram
analfabetos e contrariamente a outros exemplos – como
os próprios aqueus que antes assimilaram adaptando o letramento cretense, o linear a, ainda não decifrado - não
quiseram ou não puderam assimilar o que encontraram já feito,
limitando-se
a destruir a civilização
anterior.
Mas
a hipótese da continuidade cultural se baseia no fato igualmente
conspícuo da cultura arcaica ser a que Homero compilou
literariamente
atribuindo-se como a memória dos aqueus. E
a compilação homérica basear-se na mitologia e lendas que
realmente eram o substrato da cultura grega aristocrática arcaica.
Assim
até aqui a questão se
limitava
a
poder-se ou não demonstrar
se o Homero helênico, reproduzindo na aventura atribuída aos aqueus
apenas os traços da sociedade arcaica grega, conservou no entanto
realmente uma
memória oral
do
passado micênico. A prova integraria o achamento de Troia e Micenas, e
estaria
dependendo dos elementos
da interpretação desses sítios arqueológicos.
Hoje sabemos porém
que o panteão homérico reflete constantes culturais
do
entorno geopolítico da Grécia arcaica, o que ficou esclarecido sem
dúvida pelas similaridades com o que se descobriu recentemente a
propósito dos Hititas. Uma
circunstância parecida com o fato de que na reconstituição
homérica da guerra de Troia, tanto os ilhéus troianos como os
aqueus de Micenas cultuavam os mesmos deuses, pelos mesmos rituais.
Contudo
aquilo que aqui estamos posicionando
como o que se poderia doravante
designar
a
“questão Sparta”, conforme
o que Jaeger possibilitou articular numa obra que ainda não está
totalmente assimilada como podemos assim constatar, não se deixa
minimizar só por isso. Pois Sparta construiu materialmente a
ideologia
da continuidade
helênico- aqueia, tornou Homero um mero apoio a uma autêntica
“ciência”
genealógica, fabricada como linhagens de heróis preservadas de um
mundo ao outro, de Micenas a Sparta, como porém uma mesma história
cultural, étnica e territorial, conforme a tradição da localidade
espartana ser a mesma dos aqueus que guerrearam contra Troia.
Nesse novo momento, em que a Polis é configurada, ela não põe a
questão da mudança única, do sistema de mentalidade teocentrada em
que o clã se organizara à Polis dos cidadãos que
juntos e por igual “organizam a vida política, econômica, social
e religiosa de toda a comunidade”. Na Polis a religião antiga não
está esquecida, mas a organização é civil, as leis são feitas pelos seres humanos em processos representativos e deliberativos que devem garantir essa proveniência
como da união da cidadania. Mas a questão se torna, pois, a
princípio, a peculiaridade dos regimes políticos, uma vez que a
Cidade-Estado é bem oposta, nas suas características, entre os
extremos espartano e ateniense.
O que precipita a transição do
regime de mentalidade teocentrada do clã à Cidade-Estado, tanto
responde a um como a outro efeito. Além disso, se o máximo
interesse na problemática da transformação do regime do clã à
Polis, é o que importa à emergência do pensamento letrado que se
realiza tipicamente na Jônia e Atenas, está claro que esse é o
efeito que se considera grego por excelência, não obstante isto
estar longe da verdade histórica que Jaeger parece ter sido o
pioneiro a propor resgatar não apenas na história dos fatos, mas
por igual na história da cultura.
Mas como vimos, e vale a pena repetir nesse contexto em que se trata
da história cultural cum Sparta, a Grécia só se configura
unicamente após a invasão “dória” - por metonímia. Ela não é
micênica, e, no entanto, a cultura religiosa do período de
mentalidade teocentrada do clã é a homérica, inspirada e modelada
por Micenas, tendo a Guerra de Troia como o motivo da aglutinação
dos temas míticos que se desdobram na vida dos templos, em ritos
cujas funções variadas abrangem também funções de tribunal e
governo, e conhecimento sacerdotal que inclui as funções do Rei, restrito a senhor patriarca do clã. Ora, a tradição que assim foi origem desse
produto bem irredutível que é a cultura humanística ateniense e
sofística, institui um percurso na mutação. Entre a origem e o
produto final filosófico e científico jônio/ateniense, o único fator interveniente que se pode assinalar é
não-grego, a influência oriental, que está na base da eclosão
das seitas iniciáticas e êxtases populares, assim como a noção de alma e karma, todos estes elementos influentes na época inicial da
filosofia. A base “grega” da mutação que produziu a ciência
seria, pois, uma fusão típica, homérico-micênica e oriental, especialmente mesopotâmica e egípcia.
Mais uma vez, sentimos a complexidade dos termos de que se constitui a
questão da emergência do pensamento na história. Mas vemos como o
problema se torna mais complexo ainda, se a evolução paralela e
independente do clã homérico à Polis espartana, surpreende nisso
pelo que o substrato da transformação do mito em razão
humanística, lá não subsiste. Ao que parece, a fusão não é o
acontecimento localizado em Sparta, mas sim a opção pela pureza das
origens homérico-micênicas. Se o Oriente por si só não conheceu o mesmo
desenvolvimento científico e político da Grécia, não obstante a
filosofia na China, o budismo na Índia, e conhecimentos efetivos em
tantos lugares que não resultam porém numa sistemática de
mentalidade, há motivos para sustentar que só a definida fusão foi
o meio dos acontecimentos na Grécia. Sparta é pois a contraprova,
no sentido contrário à prova do purismo oriental, a do purismo
homérico-micênico.
O que o Hipias Maior exemplifica, lembrando que se ele
testemunha que os espartanos só se interessam por história, e nada
por qualquer fator de letramento, de fato ele especifica que não é
a de Heródoto, mas as genealogias homéricas. Se os espartanos, ao contrário dos demais gregos, não se interessam pelas lições letradas de Hipias, de modo que este só ganha bom dinheiro nas cidades não espartanas, se mantem bem recebido pelos espartanos apenas porque se esmerou na composição das narrativas genealógicas.
Simpaticamente Hipias confidencia a Sócrates sobre suas incursões nesse mister, com o
fito de agradar ao público espartano, sobranceira ou ingenuamente
ignorando o motejo socrático sobre o fato dos espartanos gostarem e
se servirem dele “como crianças que se servem de velhas, ou seja,
para lhes contar histórias agradavelmente”, ou talvez supondo que
o motejo se dirige aos espartanos e não a si.
Em todo caso, Hipias
responde: “Sim, e por Zeus, Sócrates, recentemente causei grande
impressão lá com a narrativa de atividades nobres que os jovens
deveriam realizar. De fato, disponho de um belo discurso composto com
esse tema, com um bom arranjo tanto verbal quanto em outros aspectos.
Seu cenário e ponto de partida é mais ou menos o seguinte: após a
queda de Troia, conta-se que Neptolemo indagou a Nestor quais eram as
nobres atividades, aquelas que conferiam para quem as realizasse
enquanto jovem o máximo de renome, na sequência vemos Nestor
falando e sugerindo a ele muitíssimas atividades lícitas e
nobilíssimas” (286 b).
Nessa altura da História real, ao mesmo tempo que a particularidade
de Sparta está sendo ressaltada, também está sendo solvida, pois
Hipias informa que o mister que desenvolveu unicamente para atendê-la
irá servir também a Atenas, onde ele iria repetir a apresentação
daí há dois dias, “na sala de aula de Fidostrato”. Isso por
solicitação dos que o hospedavam, provavelmente já tendo tido
notícias do sucesso em Sparta. Logo o sofista está instando com
Sócrates que assista, trazendo “outros que sejam capazes de
avaliar discursos que ouvem”. (286 c)
O substrato da transformação do mito em pensamento humano, se não
tem relação com Sparta, se define pelas atividades intelectuais.
Homero não é filósofo, mas a religião naturalística e o mito
escrito, assim que o renascimento comercial permitiu a reintrodução
da escrita adaptada da Fenícia, formam uma
continuidade que supre a transformação subsequente. Em Sparta,
segundo Ellauri e Baridon (“História Universal, Grécia”, Buenos
Aires, Kapeluz, 1958, p. 76), a aportação dos dórios iletrados se
concentrou à parte da continuidade que havia sido possível, por
meio oral ritualístico de que Homero é o testemunho registrado, da
cultura letrada micênica. É assim algo irônico que o elemento
genuinamente grego, se os gregos são pós-micênicos, exemplifica-se
por um “tipo de vida, sencilla y rustica" que contrasta com o estilo palaciano micênico que por Homero, e depois, Hesíodo e os mitógrafos
orientalizados como Orfeu, constituiu o substrato da continuidade na
“Grecia central y en las islas” onde “se mantuvieron elementos
de la cultura miceniana”.
Aquele novo tipo de vida que vinha ter lugar onde a penetração
dória foi mais concentrada, como o Peloponeso e especialmente em
Sparta, não conhecia escrita nem indústria adiantada, mas cultivava
virtudes que Ellauri e Baridon consideram a contribuição estimável
dos dórios à vida grega: o sentido do dever, a noção de
disciplina e o respeito ao passado. Esses foram, ao ver dos autores,
“ingredientes de importância em la posterior civilización de los
helenos”.
Vemos os dórios assim numa situação antropológica peculiar.
Verdadeiros “gregos”, como ramo dório, o epônimo da aportação
étnica “helênica”, típicos representantes da Idade do Ferro,
porém numa trajetória à parte de toda a cultura originária da
Europa enquanto locus de ciências, letras e legalidade constituída
tal como responde pela evolução do étimo “político”, vindo da
Polis. A “Grécia” característica, pois, como em Jaeger, menos
“grega” quanto à formação antropológica estrita do que a
Sparta rústica, guerreira e iletrada, que tipifica a vanguarda
pós-micênica dos invasores “helenos”. E que, contudo, é o único referencial que reclama como seu senso de
patriotismo a continuidade estrita ao mundo micênico,
recusando as aportações internacionais de cultura típicas na Jônia
e na Ática,
não obstante cultivando um modo de vida rústico e interiorano que
os micênicos, sofisticados reinos de comerciantes ultramarinos,
jamais praticaram.
Essa irônica situação efetiva é deslocada na ideologia
pan-helênica que, ela, se nunca recobriu uma realidade nacional
real, unificada, subsiste sempre como a referência dos “gregos”
como “povo”. O deslocamento inclusivo da trajetória de fixação
dória, tão peculiar na vida grega, mas tão bem integrada nela da
perspectiva geopolítica, se faz como vimos numa relação estreita com a circunstância da identidade
territorial. Assim vemos na composição de Rostovtzeff: “Esparta
forma o centro natural da Lacônia, o vale do Eurotas. Pouco sabemos
do começo da sua história. Na era greco-egéia, a Lacônia
contava-se entre os mais poderosos reinos do Peloponeso. Na época da
Guerra de Troia, era governada pelo 'louro' Menelau e pela 'bela'
Helena, sua mulher, que, segundo Homero, foi causa da guerra..."
(op. cit. p. 91)
Coincidentemente os dórios são o ramo dos gregos
louros. E essa instigação territorial misto de fenotípica, é a
que se utilizou efetivamente para construir a ideologia pan-helênica,
como vemos em Jaeger. Ele informa assim que a migração dórica e sua fixação foi o
derradeiro dentre os movimentos de povos que penetraram no território
vindos possivelmente da Europa Central, e que misturando-se com “os
povoadores de outras raças mediterrâneas ali fixadas
primitivamente”, constituíram “o povo grego que a história
apresenta”. Mas, em seguida, notando que “o tipo característico
dos invasores conservou em Esparta a sua maior pureza”, aduz: “A
raça dórica ofereceu a Píndaro o seu ideal de homem loiro, de alta
estirpe, tal como era representado não só o Menelau Homérico, mas
também o herói Aquiles, e em geral, todos os 'Helenos de loira
cabeleira' da Antiguidade heroica”. (op. cit. p. 111)
A diferença rasurada, a integração ideológica de Sparta num mundo
grego antropologicamente homogêneo, por
uma via não redutível ao que Homero já havia feito ou
exemplificado, sutura a brecha na tradição
micênico-grega, pelo contributo dessa evidência de continuidade de
aparência e lugar. Em Jaeger a acomodação em ato parece espraiar o
rumor da fricção dos seus materiais, a guerra de conquista, a
permanência do lugar, dado que o segundo ocupa pesadamente os
desvãos abertos pelo primeiro, até a ideia mesma do que veio a ser
instituído. A saber, o “nomos”, a lei civil, o direito como a qualificação
“grega” da mentalidade, que Jaeger cuida delimitar inicialmente
em torno desse fato de História que é a Polis, aquilo que, no seio
da vida dos povos, “representa um princípio novo, uma forma mais
firme”, mais perfeita, “da vida social, de significado muito
maior que nenhuma outra para os gregos”.
Assim, “é na Polis que
se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida social
e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura.” (p. 106,
107) Isso permite lidar com todas as particularidades da antropologia
grega como integrantes de um único todo, a vida comunitária
organizada na forma da Polis.
Na qualificação grega do “nomos” ou lei civil como força
regente do Estado grego, a Polis entretanto autônoma em vez de
apenas integrante de um império unificado vemos, pois, ainda o
fragor da construção em ato daquela unidade antropológica a partir
de materiais heterogêneos, a que assistimos não só assim fazer-se de
rupturas, como não se furtar a singularidade da Polis
espartana. Jaeger expressa que tampouco Sparta tem qualquer
similaridade com o que “os gregos costumam entender por
legislação”, sendo bem “o contrário”, como conservação do
“caráter autoritário da vida pública”.
Mas nesse mesmo trecho
Jaeger reconsidera. Se “não é uma compilação de leis
particularizadas, civis e públicas” como nas cidades gregas
usualmente, é sim “o nomos, no sentido original da palavra...”. (p. 112) Como lei oral tradicionalmente válida, Jaeger entende pois
um sentido original do Nomos na Grécia, e este é mais um ponto na
sutura ideológica, visto que se há um sentido “grego” original
– na acepção de único e peculiar – não poderia ser este, que
pelo contrário é comum nas sociedades ditas ágrafas. Seria falso
considerar que nos Impérios Antigos, que ao contrário da Grécia
nunca tiveram democracia, deixando-se de lado a questão recente do
Sumer, não houvesse lei escrita, mas a concepção de sua fonte é o
decisivo nesse caso, e só na Polis ateniense ela foi atribuída ao
conjunto dos cidadãos, em vez de a personagens cujo sacerdócio
misto de realeza facultava atribuí-la à ordenação oral dos
deuses. As leis de Sparta que foram efetivamente escritas tem ainda o
caráter dessa fonte, conforme Ellauri e Baridon: "Segundo a
lenda, Licurgo”, que era da família real, “depois de ter viajado
pelo Oriente, consultou em seu regresso o oráculo de Delfos e Apolo
assinalou a ele as reformas que devia introduzir no Estado
Espartano”. Licurgo teria recomendado a instrução para que não
fossem modificadas sequer numa vírgula quando estivesse ausente, mas
assim abandonou Sparta em seguida, definitivamente.
Na concepção de Ellauri e Baridon, essa lenda não deve
corresponder aos fatos: “As instituições espartanas não foram
obra de um homem, nem se criaram num único ato”. (op. cit. p. 77)
Jaeger considera, ao contrário deles, que não são obra posterior,
entre a fixação territorial e a consolidação do seu jugo despótico sobre a Messênia, paralelamente à subjugação dos outros povos
próximos por via de tratados na forma de ligas. Mas sim “a
sequência de um estado antiquíssimo da civilização dórica”.
(op. cit. p. 111)
A biografia de Licurgo por Plutarco, Jaeger
considera mais que simples fábula, mas sim, do mesmo modo que o
texto de Xenofonte, “A Constituição Lacedemônia”, fruto de
exageros românticos em consequência da situação de Sparta como
antítese providencial ao que estava sendo radicalmente rejeitado e
criticado como regime democrático ateniense e sua “moderna cultura
do séc. IV”. (p. 109)
Junto com as elaborações de Platão, Esparta emerge como “a
influência aristocrática da filosofia ática”, assim não o
contrário exterior, mas um dos “tipos” que “ se juntam na
Atenas dos séculos V e IV”. Ao lado destes, o terceiro que compõe
a “multiplicidade de formas” cuja composição “tanto na
agudeza de sua oposição como na harmonia que, em última instância,
as supera e as irmana”, na Grécia é Homero, que Jaeger atribui
“uma totalidade unitária de dialetos eólios” em cantos
inteiros, de modo que a presença de outros dialetos na letra
homérica não basta para desqualificar a atribuição dessa
proveniência.
Mas qual o interesse de mesclar Sparta ao “milagre grego' como se
atribui, no interregno que desde o século VII abrange a emergência de cultura
laicizada e democracia, dos jônios em geral e Atenas ática em
particular? Sem dúvida tornar a unir o que antes foi separado por
Jaeger no interesse mesmo de tratar Sparta como um fenômeno
conceituável na perspectiva da história cultural. Primeiro, pois, a
segregação, a antítese: “A Pólis é o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o período mais importante da
evolução grega. Situa-se por isso no centro de todas as
considerações históricas. Renunciaríamos de antemão a
compreender a história dos gregos se, em conformidade com as
divisões habituais do assunto, deixássemos o Estado aos
historiadores 'políticos' e aos investigadores do direito público e
nos limitássemos ao conteúdo da vida espiritual”.
A Polis, pois, é o centro, podemos estudar a cultura alemã sem a
política do Estado alemão, porém não assim com os gregos. (p.
106, 107) A Polis espartana e seu estudo, que só pode ser limitado
ao regime estatal, posto que a cultura letrada só se desenvolve
tendo sido reprimida pelo açambarcamento das forças ao militarismo,
não se limita, pois, assim mesmo. Tratando-se da Grécia, a nação
é o espírito e vice-versa. Em seguida – aqui, sim – a Reentry:
“Enquanto a vida real do Estado ateniense recebe o influxo decisivo
do ideal jônico, na esfera espiritual... vive a ideia espartana de
uma regeneração que, no ideal platônico da formação, funde-se
numa unidade superior com a ideia fundamental jônico-ática", porém, já não tipificada no regime democrático, "de um estado regido pelo
direito”. (p. 108)
À parte a questão momentosa da filosofia platônica como intenção
regeneradora subentendendo assim uma pureza original que Sparta
encarna, mas que Platão não poderia transmitir como ideia fora da
democracia, onde a filosofia somente viceja, e à parte a fronteira
de filosofia e política real, que o processo contra Sócrates
expressou historicamente, é imperativo o exame desses conceitos de
direito e Estado jaegerianos. Eles muito tem a ver com críticas da
interiorização da lei na democracia contemporânea, que no fundo
são críticas de fundo monarquista, como a de Foucault – que
considerava o antigo regime colonialista mais brando quanto à extensão
das penalidades, sendo porém o oposto quanto ao modo de as cumprir, supondo equivocadamente tolerante com os pobres e os
vagantes. A propósito, em “A Evolução do
Capitalismo” Dobb desfaz essa falácia foucaultiana, mostrando como o império era na verdade um veículo da opressão capitalista sobre os pobres, com leis que obrigavam a vagar por proibir casas com muitas pessoas no campo, mas também leis que prendiam como bandidos e puniam barbaramente, permitindo a escravização, os vagantes - taxados vadios.
A princípio,
quanto a Jaeger, não se verifica que o Estado tenha aparecido “pela
primeira vez” na Polis grega. Já ressaltamos que hoje nem consideramos terem sido os gregos
pioneiros quanto à democracia, mas se o que Jaeger privilegia em
termos desse “Estado” é apenas “a ideia fundamental
jônico-ática de um Estado regido pelo direito”, a “ideia
espartana de uma regeneração” sugere a pergunta. Regeneração
de que? Não é do direito, pois este é a ideia jônico-ática. A
proposição parece estranha, pois a regeneração só poderia ser de
um Estado não-democrático, porém não há direito, propriamente
falando, sem democracia, não obstante haver leis autoritárias e
instância pública de sua formulação e observância - o que não seria originariamente grego. O que
Foucault e outros não percebem, como o erro fundamental de que
partiram, é o mesmo que aí Jaeger parece praticar. Ao contrário da
antítese que ele colocou, fora da democracia não há “direito”
na acepção de “legalidade” porque esta é a adequação dos
enunciados a um princípio formulado como tal.
A legalidade como esse princípio em função do qual as questões
podem ser julgadas, é, pois, a isonomia dos sujeitos da
observância legal. O princípio é pois o contrário de uma ordem
simplesmente instituída a partir de uma instância acima da função
referencial. Não há sociedade ou instância que a personifique
acima dos sujeitos que a compõe como sujeitos do conhecimento dos
vínculos que os inter-relacionam, do ponto de vista da legalidade,
conhecimento cujo conteúdo é o que os sujeitos decidem – do
contrário o que há não é legalidade, é arbítrio que como Piaget
estudou, tipifica a mentalidade infantil.
Se permanece questionável
a subordinação de conteúdo, entre conhecimentos científicos e
maturidade do juízo legal, que Piaget afirma, vemos porém já na
origem da Polis democrática não ser questionável o vínculo
formal, pois se trata de um conhecimento objetivo necessário dos
princípios legais- constitucionais de que se podem haurir os
critérios para definição de juízos efetivos na conduta pública.
E a isonomia torna os princípios matéria de conhecimento objetivo,
que difere de obediência a qualquer.
Sem dúvida Jaeger se utiliza dessa noção de legalidade para o
seu situamento da Polis grega. Porém esquece, em seguida, que
“Polis” nunca será sinônimo de isonomia, se, como em Sparta, o
que define o status do cidadão não é apenas a igualdade definida
da cidadania, mas a diferença do poder que dispõe o cidadão como
senhor de classes outras, ao mesmo tempo definidas na abrangência da
Polis e excludentes do direito isonômico.
Todos estamos bem
conscientes de que Atenas conservou a escravidão e comportava
estrangeiros residentes porém não cidadãos, mas a questão é que
a cidadania ateniense se delimita pelo princípio da legalidade, a
igualdade perante a lei, ao contrário da definição espartana do
cidadão como agente da conquista potencial ou atual de outros povos
ou pessoas. Sem o princípio dos direitos iguais, o “direito”
resume-se na atribuição de poderes sobre determinados grupos, o que
é o trato cotidiano da monarquia aristocrática, Império ou
ditadura. Ou seja, não comparte o mesmo significado da legitimidade da lei, de
um modo que implica não existir legalidade (“direito”)
na ausência da isonomia, apenas mera força bruta. Assim,
legitimação de um regime, e legalidade do regime, não são a
mesma coisa, pois a primeira pode ser apenas o factum da força
bruta, mas a segunda implica uma concepção objetiva como vínculo
isonômico da lei.
Ao contrário do que Foucault sugere segundo fantasias bem
platônicas, não se segue que nas monarquias há menos vigilância
ou atribuição de crime do que na sistemática penitenciária das
democracias atuais. Posto que o direito oligárquico mesmo apenas
define os grupos dominados como inferiores conforme delimitação dos
seus deveres com os senhores. Fora da democracia o
grupo dominante define como crime a não aceitabilidade da legitimação pela força,
inaceitabilidade que é porém a própria legalidade.
E se formas de salvaguardar direitos de servos subsistem, trata-se de
adorno narcisista da classe senhorial, porque não existe qualquer
fórum onde se julgue com isenção a reclamação das partes, caso
considerem-se lesadas na observância dessas formas. Na aristocracia não há o
princípio da legalidade, como podemos considerar conforme acima
estabelecemos, que se encontra na democracia. Todo aparelho burocrático de julgamento apenas
enuncia a ordem de uma dentre as partes, a oligárquica e senhorial.
A interveniência do regime feudal e imperial na Europa cristã por
exemplo, onde se trata da aliança da autoridade da igreja e a força
militar das famílias nobres, não altera a substância ilegalista
do regime, pois não se faz caridade sem cálculo “político” na
acepção deturpada do termo, como do mero interesse da manutenção da desigualdade constitutiva dos estamentos. Assim não pode haver direito na acepção estritamente grega,
jônico ateniense, da legalidade, mas
quanto ao fundamento, a que vale atualmente nas nações
constitucionais, sem democracia, ou, ao menos parlamentarismo, o que torna a
proposição jaegeriana do platonismo como regeneração
não-democrática do direito sem sentido, a menos que se trate da
regeneração do mero estado de domínio senhorial, como de
privilégios, poderes arbitrários, de casta, etc.
A proposição
pode, é claro, ser lida apenas desse modo, como unilateral protesto
do autoritarismo de classe. Porém o autoritarismo não combina com o modo expositivo consciencioso de Jaeger, de modo que ele resgata mais do que os comentadores usuais da unidade helênica, a heterogeneidade geopolítica e cultural da Grécia na Paidéia.
Jaeger levanta a ponta desse véu mas não tem sido reconhecido por esse
mérito, o que torna coerente
que a influência dele até
agora não tinha se
produzido sequer como
recolhimento dessa mudança de planos na história. Talvez o
que possa explicar por que a perspectiva
nietzchiana do teatro, manifestamente contra Eurípides, tenha sido preponderante.
Ora, não é difícil
mostrar que ambos, tanto Nietzsche como Jaeger, são
pensadores espartanos, enquanto pensadores da aristeia, em grego, a superioridade dos "melhores" (aristoi), termo de que provém o étimo aristocracia, de nenhum modo da igualdade.
Os
problemas postos na prática dos teóricos pela democracia escravista grega antiga, assim como pela persistência do Poder de classe nos regimes modernos, ou pelos totalitarismos fascista-capitalista e “proletário”-soviético modernos, são de fato grandes demais para serem ignorados por uma
ideologia do progresso linear. O que havia sido a constatação da época pós-positivista de Nietzshe, porém alcançando um auge na era culturalista de Jaeger, quando até mesmo o marxismo, entre Lukacs e Gramsci, os estavam equacionando de modo a fazer inclusão da cultura não de todo oponível agora à preponderância da base econômica. O que tornou tão comum a confiança numa legalidade imanente, não progressista, isto é, não redutível a ideologia das modernas instituições burocráticas, legalidade que todos almejavam conceituar, era então a constante da recusa de conceituar capitalismo e regime constitucional como opostos, uma vez que a identidade de ambos era a premissa da evolução social do Ocidente. A legalidade "autêntica", a praxis social, se tornava assim o conceito dominante em ciências humanas e uma questão posta na prática durante a reconstrução alemã após a primeira guerra mundial.
Além disso, os problemas mesmos
abrangem o que a posição desses dois pensadores, Nietzsche e Jaeger, expressa, a
desigualdade no âmbito da cultura, o que o esteticismo crescente desde a época de Nietzsche explorava convenientemente, para expressão dos anseios da pequena burguesia emulando a rearistocratização capitalística da grande, num cenário de transição ao monopolismo, modelar do capitalismo alemão, e intensa competição entre os impérios neocoloniais que conduziram à segunda guerra.
O nacionalismo redescoberto na
Grécia espelha de modo bastante óbvio a problemática “alemã”
que coalescia com plena
expressão histórica entre Nietzsche e Jaeger. Porém
vemos como o equacionamento de ambos é dessemelhante.
Nietzsche, por meio do dionisismo, porém
de fato expressando a
valorização grega da aretê aristocrática, chega
a uma dramaturgia do pathos que
não é coerente com ela. O
próprio aristocratismo nietzschiano é contraditório na medida que
o dionisismo no qual se baseia não era “olímpico”,
opondo-se explicitamente em Nietzsche ao “apolínio” como o período da Polis dramatúrgica ao homérico. O dionisismo grego era
populista, radicalizando-se e internacionalizando-se, pelo sincretismo com mitologias estrangeiras egípcia ou asiática, assim como se radicalizou nos cultos helenísticos da era
imperial. O erro de Nietzsche é aliás flagrante, posto que confunde a metafísica socrática, que nasce como a oposição oligárquica mais expressa à democracia, com uma ideologia da igualdade populista e democrática que o repugna. Mas vemos assim que o teatro em Nietzsche tem o sentido da legitimação não institucional, puramente cultural.
Jaeger,
inversamente ao contraditório populismo aristocrático nietzschiano, por essa
valorização da aretê
aristocrática em sentido estrito, preserva-a sempre na delimitação
homérica como manancial do que
evolui, de modo que o moderno jamais deixa de ter algo de
conservador, e consequentemente aporta ao
platonismo como sua expressão aristocrática mais vital. O papel do teatro
grego se torna dialético num sentido hegeliano do termo. Mas da
tese homérico-aristocrática
à
síntese platônica só pôde
produzir-se
a aufhebung por esse outro termo que transcende a
Jônia e o aticismo, o atavismo igualmente
tético da aristocracia
espartana.
Jaeger,
inversamente a Goldschmidt, não coloca Platão em total antítese à
poesia e consequentemente à
dramaturgia, mas sim ao
individualismo filosófico de Eurípides, do
mesmo modo que não interpreta Sparta como simplesmente a cópia fiel
do que Homero reconstituíra da
Lacedemônia micênica. É
como se Jaeger pensasse uma síntese antecipada por uma nova tese, a
Sparta de Licurgo e Tirteu.
O modo como
Jaeger trata o teatro de Eurípides é estratégico ao seu viés
platônico, aristocrático nesse sentido histórico, isto é,
espartano, onde portanto o que ele pretendeu como síntese era um nomos - lei ou direito - sem mediação institucional, internalizado pela Educação ("Paideia"). Para isso contava com a ideia de unidade, que o militarismo espartano representava bem, mesmo que muito simples ou toscamente. O silogismo abrange pois, Platão como realização conceitual dessa unidade que não obstante interior, de fato corresponderia à praxis histórica. Assim podemos aquilatar o quanto se mostrou útil o exemplo construído por Jaeger, da sociedade encarnada espartana à conceituada platônica. Mas o aristocratismo de Jaeger, como um helenismo muito mais instruído do que o de Nietzsche, não tem nada de sic et
non, os sempiternos paraíso ou condenação, da grandiloquência
nietzschiana que apenas reedita o estilo populista dos pregadores
bárbaros cristãos de que Nietzsche mesmo se pensava a antítese. O nietzscheísmo da voga pós-estrutural, tão
agressiva a Hegel, mostra-se bem coerente com a linha barroca que na
Globalização segrega, como no período colonial-escravista, o norte
e o sul como os estados fixistas de civilização e barbárie, ainda
sem as ciências humanas para explicar a “evolução” ainda que
nada mais do que pelos sucessivos equívocos biologistas que formam a
sucessão dos paradigmas. Não subsistem “países desenvolvendo-se", não importa o quanto o Sul já estivesse
industrializado há muito, antes desse novo saque colonial que é a
“globalização”, a apropriação por roubo direto, puro e
simples, da poupança privada, salários e indústria nacionais na margem anexada pelo capitalismo central, multinacional porém com os monopólios tendo sedes ao Norte.
Jaeger, com muito
mais coerência, não capitula ao anarquismo populista
contraditoriamente instrumentando-o pelo dionisismo antigo, ao
contrário do que faz o pretenso aristocratismo de Nietzsche. Assim,
ainda que tão tendencioso como é patente, o seu exame da democracia
grega não seleciona apenas o que pode apontar com o dedo das mazelas
sobrevindas na ruptura da suposta homogeneidade dos valores “nobres”,
mas ressalta paralelamente o que era grande e belo, como não poderia
deixar de existir naquela que foi o único e verdadeiro marco da
Grécia na história das civilizações, Atenas.
Com
verdadeira elegância haurida na fonte “clássica” por
antonomásia, não há nada no exame de Jaeger que se destaque como a
violenta oposição nietzschiana do alto e do baixo, do nobre e do
vil, e com Jaeger aprendemos o sentimento da “emoção recolhida na
tranquilidade”, a amplidão da alma lúcida o suficiente para
acolher o que é bom, seja onde estiver. Porém não com
“desinteresse” meramente objetivo, arqueológico nesse sentido da
disciplina dos fósseis, da mera reconstituição de coisas, que ele
condena severamente em nome da poesia.
Como “método”
que persegue o objetivo apenas “através de um processo de
reconstrução”, Jaeger considera a arqueologia um empreendimento
“fundamentalmente estéril, mesmo quando as tradições documentais
são muito mais numerosas que na Antiguidade.” A seu ver, “só a
poesia nos permite apreender a vida de uma época em toda a riqueza
de suas formas”. (p. 415)
Assim vemos porém que ela funciona de algum modo inesperado, já que fora da legalidade não há garantia quanto à
identidade de classe dominante, entre aristocracia ou um
“proletariado” consciente de si a partir de embasamentos
teórico-políticos. Na atualidade escrevo num país vilipendiado não
por uma ditadura instituída, mas pela ação insidiosa de grupos
ilegalistas que controlando os movimentos de sindicatos, estudantis e
civis em geral, como étnicos e religioso, além dos próprios
cargos de governo, instilam a ideologia da falsa liberdade a partir
de prerrogativas que semelhantes às do proletariado, seriam porém
desiguais relativamente aos cidadãos. Liberdade falsa, pois
restrita espantosamente à ação contra a lei constitucional
qualquer que seja, avassalando os direitos humanos individuais os
mais básicos, de modo inacreditável devido à impunidade, com a
Globalização o permitindo a partir de políticas info-midiáticas e
imperialistas que visam a desestabilização das nacionalidades.
Mas nesse caso o absurdo persistiria, na concepção de qualquer
fusão da aristocracia com o direito efetivamente democrático –
além de inócuo verniz que não concede meios de letramento em nível
formal, mobilidade social por qualificação profissional, garantia
dos direitos pessoais ou meramente o conhecimento do funcionamento do
regime. A teoria das ideias platônico-socrática não chega
realmente a isso, limitando-se à postulação arbitrária de um ser
cuja escala idiossincrática de valores deve ser considerado norma
superlativa dos demais, ditames assim personificados, dado que toda
sociedade se resume a eles mesmos, sob pena capital qualquer oposição
ou heterogeneidade efetiva que não se deixasse anular no plano político.
Como vimos, o culturalismo na acepção daquele objetivo de encontrar uma fórmula da coesão social que não dependesse do que na época era considerada a quimera da instituição burocrática, parece fornecer a resposta ao que seria o enigma de obras tão bem constituídas como a de Jaeger, porém pautadas sob o infundado argumento de um direito aristocrático mais autêntico.
Se Jaeger idealiza bastante a Grécia, num sentido parecido com o de Snell que a ela opõe o "oriente" como referencial de obscuridade irracional, Nietzsche teria esmaecido essa oposição, conceituando pioneiramente o que outros designaram "a Grécia noturna".
Quanto a isso realmente Nietzsche revela mais autenticidade, mas vemos que na escola francesa recente a intenção da "inocência" grega à Nietzsche, o livre curso da ação irrefletida como vontade de potência mais sã, se esclarece na subsequência do neocolonialismo. Trata-se de um aristocratismo que por um lado se propõe como o burguesismo coerente, contra o que só haveria barbárie, mas também, enquanto o capitalismo se afirma sobre os nacionalismos da margem e o comunismo, torna-se como que um resgate do autoritarismo. Procede-se como se houvesse uma constante da aristocracia grega arcaica como um regime de sacrifícios humanos, fechamento territorial, segregação de classe radical, etc., na organização da Polis. A democracia, mera adaptação do poder da soberania, assim conservando-se pelo simbolismo do "centro" (meson). A retórica pode não ser metafísica, mas se ela é mais coerente, é porque enuncia-se como Platão a considerava, um mero expediente para fazer os outros acreditarem que estão comungando de um mesmo significado quando o orador apenas manipula signos vagos, sendo esta a espécie de acordo a que só se pode aceder como harmonia social.
O que não parece algo muito demonstrável, tanto pelo que a história registra da luta de classes dos nobres e plebeus, assim como do afluxo da riqueza comercial na superação do regime interiorano aristocrático; pelo estudo da retórica como um repertório dos problemas da linguagem politrópica, isto é, que deve ser adequada ao seu endereçamento exclusivo; como pelo fato mesmo da Polis democrática não adotar sacrifícios humanos na letra de sua lei, de modo que os deuses benévolos da Cidade são eles mesmos referências da transformação da mentalidade.
Muito do aspecto sádico da aristocracia grega arcaica pode estar relacionado à circunstância do período interiorizado, parecido com o feudalismo inquisitorial cristão europeu, devido ao quadro de invasões e o caráter iletrado dos dórios. Porém se a cultura é um referencial independente, a aristocracia como regime tem constantes coerentes com o pressuposto de todo autoritarismo. Se os conhecimentos novos sobre entornos asiáticos tem servido mais recentemente para generalizar a Grécia como tipicidade indo-europeia, vemos que questão de como emerge o regime democrático, em que vicejam textos que testemunham a mentalidade isonômica legalista na Grécia antiga, é que se torna pois muito importante desenvolver. Mas aqui espero mostrar que o conhecimento dos antípodas é um dos recursos mais úteis nesse mister.
III
Podemos considerar que se Sparta é o ideal que pareceu a Jaeger
“regenerativo”, atua aí o pressuposto da degeneração da
democracia ateniense. Mais do que a Polis na Lacônia, de que se deriva a qualificação do "laconismo", exemplificando-se assim um temperamento, Sparta é a influência que permitiu à aristocracia ateniense se reorganizar durante a vigência democrática, a partir de certa resistência que nada menos que o platonismo permitiria situar no plano cultural. Compreensivelmente, se assim se posiciona, Jaeger não pondera o nexo de Sparta com a Persia, para inversamente fazer dela o referencial genuíno da cultura grega.
Mas o critério desse julgamento da
degeneração sobre Atenas, ou é ele mesmo democrático, assim como a consideração sobre o que por si mesmo é são, ou não teria sentido na
circunstância de que se trata, na medida que não era a restauração
da democracia o que estava em jogo, mas a condenação de toda
heterogeneidade como impura, na oposição aristocrática a ela. E
como tudo comprova, a mentalidade aristocrática e sua propaganda
simpatizante de Sparta, sobretudo entre os jovens, era a tônica da
vida social na altura da produção dos escritos platônicos.
Se Jaeger estivesse apenas considerando a democracia como degeneração da Polis grega, de que Sparta teria se isentado, isso seria mais contraditório com os fatos, uma vez que na Grécia somente Sparta se organizou como unidade militarista, enquanto as Polis constituíam regimes de participação civil, assim também sem desenvolvimento de produção letrada, sendo as demais Polis geralmente fontes de contribuições nesse sentido.
Independente desse anacronismo de Jaeger, retornando ao seu posicionamento da Polis como centro estável em
torno do qual tudo o mais na cultura grega antiga vem gravitar, vemos
como por isso mesmo Sparta resulta na sua exposição o mais profundamente inserida no
meio cultural grego. O fato dela ser nada menos que iletrada além do
básico, por lei proibindo letramento acima desse nível e do conhecimento das genealogias heroicas, e, mesmo assim, não abranger o parco ensino da civilidade,
as classes mantidas na servidão, se torna repentinamente elevado ao
motivo mesmo pelo qual, em vez de um contraste total com a habitual
generosidade com que as produções da cultura letrada promanam da
vida educada no ethos humanístico que caracteriza a formação da
Polis grega, Sparta surge como o mais típico desta.
A isonomia não é aí, certamente, senão um modo de
segregacionismo violento e consciente, praticado como norma de grupo
a todo outro que não o pode integrar, nomeadamente os escravos gregos messênios, mas, conforme Jaeger
estabelece, é inegável que “A criação mais característica de
Sparta é o seu Estado, e o Estado representa aqui, pela primeira
vez, uma força educadora no mais vasto sentido da palavra.” (p.
109) O pioneirismo é compreensível, mas justamente apenas no
interior da questão antropológica da Grécia Antiga. Ao contrário
do que diz uma canção popular (“Mulheres de Atenas”), todas as
Cidades gregas que não Sparta foram pioneiras nesse sentido pelo
que, como “Polis” fundaram-se conforme o princípio de sua
existência ser em função da cidadania. Sparta, inversamente, é o
Estado em função do qual o cidadão vive.
Porém assim não haveria
nada singularmente “grego” ou novo aí, posto que todo regime
bárbaro era habitualmente o mesmo despotismo fascista onde não
havia qualquer questão da “legalidade” que expressasse o ter
vindo a ser pensável da relação da lei com o indivíduo. O homem
era apenas trânsito da ação dos deuses e do dever-ser comunitário imutável. Mas se é
como Polis, como Estado leigo, organizado em torno da constituição,
que a subsunção arcaica se testemunha em Sparta, então
compreendemos algo do “pioneirismo” a que se refere Jaeger.
O que a história antiga tem a mostrar são os acontecimentos que
resultaram no recalcamento da legalidade, esta que só retorna na
modernidade, mais de dois mil anos depois. E mesmo assim, como já
ressaltei, o imperialismo dos dois séculos recentes implica a
Globalização como o que está se demonstrando hoje, enfrentamento
da força ilegalista que está em curso, porém ainda restando as
constituições formalizadas e pós-escravistas-coloniais.
Os
acontecimentos no Brasil da atualidade, onde escravismo com roubo
direto de salários e direitos, corrupção com despotismo
generalizado no governo, além de violência direta de gangs
nas ruas, nas telecomunicações e no atendimento de
comércio e serviços ,panopticum ilegal nos domicílios projetado por gangs, fazendo do cidadão que paga impostos e taxas de habitação, cárcere privado sem qualquer consentimento, violência pura abuso do tipo mais calhorda, invasão de computador pessoal, espionagem digital, etc. sendo acontecimentos inaceitáveis porem cotidianos, mostram o
rumo da Globalização de multinacionais inteiramente contrário à vigência da
legalidade constitucional nos países dominados ("periféricos"). Nesse rumo, de modo
inteiramente inantecipado pelo vocabulário e mentalidade “modernas”,
as assim designadas “esquerdas” se mostram o meio mais adequado
da dominação, como focos de populismo sectário anti-constitucional
que tão bem serve aos projetos do cartel capital-imperialista
info-midiático planetarizado. Uma vez que as esquerdas pregam conforme o marxismo, o axioma a priorístico da modernização como meio do político, isentando-se de arcar com a tarefa de assimilar as informações que mostram o quanto o capitalismo, ao contrário do que prega a tecnologia de bugigangosfera, se limita a mentalidade arcaica.
Por causa disso, hoje estamos
tendo mais consciência no exame histórico da atuação dos partidos
comunistas e similares de esquerda da modernidade, já não abstraindo sintomaticamente o
objetivo ditatorial, corrupto, convergente com a ideologia da industrialização.
A aristocracia suposta modernizante do “proletariado” é igual a qualquer outra, e o
que ela discrimina não exime o próprio trabalhador que não integra os ditames ou a imagem projetada pelo partido. O mesmo tem
sido porém multiplicado a quanta no populismo, para qualquer
característica de grupelho, não obstante estar se verificando na
ciência, nesse ínterim, a inviabilização de toda “diferença”
justificável do ponto de vista biológico.
Assim hoje temos uma posição na ciência muito mais consolidada, a
propósito da relação entre sanidade mental e legalidade
constituída, o contrário do estado de coisas antigo. Lá o que se
expõe são os acontecimentos que tornaram impossível o percurso da
Cidade-Estado, recalcada pela conjugação crescente da força, e
formada inversamente ao ideal fascista-imperialista de Sparta. Mas
como estamos constatando, quanto à geopolítica grega, o erro é
considerar que a força espartana é apenas materialmente exercida.
A lição de Jaeger a propósito é inestimável, podendo ser
interpretada como a genealogia do fascismo moderno propriamente dito,
a administração carismática do “eixo”. O Estado imperial
hobbesiano não seria aqui o modelo adequado, justamente por esse
aspecto educacional totalizante que Jaeger ressaltou a propósito de
Sparta. Na era colonial-escravista, o príncipe representava o poder
moderador sobre uma sociedade pré-existente, clivada como estava
entre aristocracia e burguesia. No “eixo”, a concepção
totalitária subsume todo o sentido do poder na subsunção das
partes ao todo. Porém
o todo estando personificado carismaticamente por um líder máximo,
assim a meu ver ao contrário do
modelo da “cebola” que Hanah Arendt propõe para o moderno
nazi-fascismo, como
um sistema de propagação da ordem a partir do centro, por todas as
camadas da sociedade, que assim seriam igualadas.
E a mesma subsunção parte-todo é o que Jaeger define como a mola espartana da
educação estatal. Por essa lição podemos compreender que a
característica mais saliente das nações totalitárias do “eixo”
no século passado, a liderança passional-carismática na Alemanha e
Italia especialmente, não era de fato o principal, mas sim a
ditadura cultural, a dominação ideológica sobre a subjetividade, que também era o
objetivo do lado oposto, como na guerra de posição gramsciana. Porém
sendo dentro da cultura nazi-fascista ela mesma que o líder máximo
tem um sentido inalienável. Consequência
contudo supérflua à demonstração de Jaeger do a priori da
cultura totalizante que Sparta serve tão bem ao regime pan-germânico, na como sua própria origem indo-europeia greco-antiga.
O
industrial-imperialismo da modernidade, sobrepondo-se como força e
ideologia ao movimento progressivo de organização da sociedade
civil na legalidade constituída, tornou-se um novo tipo de Leviatã
contra-estatal, a partir do momento em que distorceu a ciência num
discurso de domínio tecnológico capaz de atuar como propaganda da
evolução social à direita e à esquerda, supostamente justificando
subsumir assim todos os objetivos da educação a partir da ontologia
mesma do Homem. Vemos assim como se comprova que capitalismo e Estado democrático são antípodas.
A chave da dominação totalitária é portanto a
ideologia fascista do “todo” que se arroga o verdadeiro sentido do Estado mas não define o papel da legalidade, o poder é o que resulta da capacidade de
defini-lo como um status - raça nacional, condição privada, partido político, etc. -
e representá-lo como poder de aglutinação das partes. Estas
deixam de ser partes, integrando o todo elas são apenas a
contra-parte do “fora” por dominar e/ou excluir. A definição do “todo” é
pois a justificativa “evolutiva”, “cultural” ou “naturalista”
desse domínio. O culturalismo de inícios do século XX formulou-se pois sob uma metodologia funcional ou holística que evolui a um senso-comum generalizado de esquerdas, inclusive nos movimentos ditos humanistas dos sixties que hoje ainda reverberam ídolos, do "rock" à física de Capra, mas teve igual peso na extrema-direita nazi-fascista.
A aglutinação do “eixo” era então a palavra de ordem da
segregação do que não se coadunava à subsunção identitária da
“evolução”, tendo tido papel importante a questão racial, enquanto na esquerda trata-se de invectivar a organização civil como verdadeiro referencial do político. A questão racial do "eixo", como
em Sparta, porém vemos que não pode ser de fato explicativa do
fenômeno – assim, à esquerda, a propaganda do “proletariado”
funcionava do mesmo modo, e hoje podemos esperar algo parecido na
propaganda das prerrogativas do “gênero sexual”, do "negro", etc., como no
habermasianismo de Benhabib, narrativismo de Carol Gilligan, "etnociência”
segregacionista-obscurantista à Sandra Harding, etc. Se o
pós-guerras e o “estruturalismo” não são um cenário coerente
com esse horizonte atual, esses exemplos mostram como o resultado não
deveria surpreender. Se o fim da guerra não implicou ruptura da
ideologia do industrial-imperialismo “evolutivo” para o bem ou
para o mal, se pelo contrário, o imperialismo tornou-se muito mais
potente e avassalador na segunda metade do século passado, só o que
poderia parecer incongruente é o modo como a new left em particular
e a esquerda em geral, abrangendo Althusser e o pós-estruturalismo,
jamais o equacionou a não ser até onde pudera manter,
esquizofrenicamente, a mesma ideologia do ocidente absolutamente modernizador.
Na origem totalitária-totalizante da esquerda e direita do século XX, a
reflexão de Jaeger equaciona pois na genealogia espartana do
totalitarismo, um papel da força que não explica materialmente a
dominação. Esse papel não é menos importante, assim como,
obviamente, a quantun material da força. O que faz todo o
mérito desse texto altamente qualificado que é a Paidéia, parece
ser ter mostrado tão bem como a força tornara-se um conceito de
educação, uma fórmula de “educação estatal-racial” em
Sparta.
Fórmula que devemos ver, contudo, como o açambarcamento da
organização de Estado pelo ideal de educação totalizante,
unitária, como ideologia da força, ao invés do contrário, um
papel do Estado na prática educativa, como o que é esperado na
democracia. A prática educativa enquanto letramento, pois, não está
subsumida por qualquer aparato estranho a si, como ao devir dos
conhecimentos. O oposto é o meio totalitário da educação, e o
aparato da ideologia é pois em que se converteu em Sparta, mas
também na Alemanha do “eixo”, o que poderíamos designar a
força (ideológica) da força (material).
Aqui
mostra-se porque o modelo da cebola arendtiano não foi suficiente
para a questão do totalitarismo, mesmo
não sendo negável que o modelo da pirâmide, um império do alto se
exercendo sobre os vértices dispostos numa base, parece mais antigo
que moderno. O fato é que o modelo da cebola
ignora o aparato ideológico da força,
mas
assim
vemos que já a Sparta
não
conviria o modelo da pirâmide.
Em
qualquer formação militar normal,
de
defesa do território nacional, a
necessidade do comando é evidente por si só, assim nas sociedades
simples que exibem regime igualitário, a função da chefia é
exclusivamente militar, reservada ao caso de guerra. Mas numa
formação social totalitária a função militar é investida
imaginariamente, oque é talvez um denominador comum em sociedades invasoras, que não
puderam se fixar no território de origem por motivos de escassez –
contrariamente a sociedades longamente estabilizadas, que puderam
desenvolver habilidades práticas e letramento pelo abrandamento dos
costumes em tempos pacíficos.
Assim
como Roma ou os bárbaros que destruíram o império romano e representam as
proto-nacionalidades europeias atuais, as sociedades guerreiras são
geralmente aristocráticas. O definiendum do sistema, em sociedades orientadas para a invasão bélica, é a hierarquização
das relações, desde a liderança máxima do
führer,
relativamente aos governados, até os mais comezinhos modos
de relação social de modo que sempre fique claro que dentre os
“participantes” algum é “superior”, “líder”,
“primeiro”, etc., em
relação ao(s) outro(s).
Essa
é a linguagem repetida ad
nausea
nos programas de televisão, nos
discursos
típicos de modelização ideológica na internet, gangs da atualidade, modelos da psicologia de pacotilha, meras adaptações à publicações
da comunicação em massa, partidos
políticos e sindicatos, ligados ou não a radicalismos religiosos de
massa, e principalmente na
propaganda, nessa
era da Globalização como
império de multinacionais norte-americanas, europeias e asiáticas –
contrariamente ao tipo de veiculação e
relacionamento liberal
na
época do
Welfare State.
Essa
linguagem hiper-investida no business de mídia ao longo da
consolidação do imperialismo, e como um objetivo de classe definido
pelo interesse do próprio capital, literalmente forjou um desejo
pelo líder máximo naquilo que logrou
consolidar plenamente na Globalização,
uma
geração pós-liberal com vertentes neo-nazi-fascistas
e de modo geral impregnada pelo imaginário da hierarquização.
Nisso ocorreu uma despotencialização planejada do letramento para
redução do próprio sistema escolar ao aparelhamento
info-midiático.
Assim agora, como constata-se no Brasil, há atração dos jovens
pelo retorno da monarquia colonialista ou regimes de força à
direita e à esquerda. A
propósito da atuação do capital de mídia como fator determinante
na articulação imperialista norte-americana ver o meu Riqueza e
Poder, a Geoegologia (Quártica editora).
Quanto
à Alemanha como “caso” jaegeriano, vemos que de fato lá se radicalizou o
culturalismo numa
ideologia de Estado como reação à hostilidade declarada pelo
imperialismo inglês à prosperidade alemã, o que resultou na
bastante injusta primeira guerra mundial. A transformação da
Inglaterra, de modelo da constitucionalidade parlamentar a império
neocolonial agressivo na Europa dos finais do oitocentos é
provavelmente um dos fatores que tornou o culturalismo em geral,
abrangendo anarquismo, marxismo humanista, Teoria Crítica, etc.,
vindo
já
desde o aristocratismo de Nietzsche e o positivismo ditatorial de
Marx, uma ideologia contrária ao liberalismo de Estado como mera
ideologia de classe burguesa. A
transformação culturalista de Nietzsche em diante se define porque,
como
em Foucault , já não considera
a burguesia apenas
como
classe proprietária,
mas como
classe para-si detentora da
ciência fenomênica – que
assim os críticos desqualificam quanto à pretensão de ser o oposto da ideologia.
Fatores
do regime hitlerista como o racismo não foram de fato exclusivamente
alemães, ainda que aí explorados pelo imaginário hierárquico
da força.
A partir daqui porém o paralelismo de
antigos e modernos, Sparta, Alemanha e Globalização, deixa de ser interessante na
medida em que as noções de força nesses dois casos não compartem a
mesma ideologia do industrialismo tecnológico, midiaticamente
estetizado, que é prerrogativa do moderno totalitarismo “evolutivo”.
É
significativo porém que na atualidade o complexo militar-industrial
que define os Estados Unidos segundo seus próprios intérpretes,
mas na Globalização, como ápice da articulação mídia-executivo,
anti-democrática neonazista aversiva aos direitos humanos, atuando
lavagem cerebral mundializada por meio de personal computer
microsoft - cujo
monopólio abusivo no Brasil, conjuntamente
a provedores e aplicativos que atuam odiosamente no mercado local
como Claro, Oi, etc., foi implementado associativamente desde
FHC (1995,
2003), principalmente durante
a
vigência do petismo (2003
– 2016), mas continua do
mesmo modo
no bolsonarismo - assim
como o expediente de multinacionais que detem criminosamente
monopólio de serviços básicos, como a Naturgy, cobrarem contas
abusivas a cidadãos que não tem como se defender porque o suborno
corrupto se estende ao judiciário - que espionam cidadãos idôneos para objetivos de
palhaçada de filmes, músicas norte-americano ou demais produtoras corruptas, veiculação de apoio a partidos ou
sindicatos fascistas populistas corruptos assim como atuações
similares de direita, conivência de autoridades públicas com
banditismo ordinário praticado por quaisquer - que nada tem de
“arte”, reduzindo-se a propaganda contra o desenvolvimento da
inteligência acima do nível do débil mental - o aparelho
ditatorial de holywood tenha propagandeado identificar-se ao
ideologema spartano – atuando porém conectivamente ao Brasil como
polo do seu “eixo” neototalitário.
Na atualidade somente golpes
de Estado nacionalistas, que expulsem a dominação de multinacionais
nos serviços básicos, o banditismo internacional e destrua os
partidos políticos, sindicatos, instituições,
firmas, agências de propaganda, mídias, gangs, ou indivíduos que atuam corrupção abusos
diretos contra cidadãos, poderão fazer retornar a observância da
legalidade constitucional em prol da garantia dos direitos civis dos
cidadãos.
A genialidade de Jaeger é ter obtido no platonismo como expressão
cultural de Sparta, o que poderia ainda assim manter-se em comum, até
mesmo como fator explicativo da oposição, em termos, justamente, de
“evolução” a partir da origem qualificada. Não de todo
diferença de jure, não obstante os fatos.
===
Sparta,
Platão e Paidéia
Como índole do platonismo, educação tem um sentido
independente de todo da pedagogia como mister de se ministrar
ensinamentos especializados. E se a educação assim se define pela
inculcação de um valor único, posicionante do indivíduo por sua
subsunção a ele, a referência de Jaeger a uma “ideia central que
penetra todas as minúcias da educação espartana” (p. 109) não é
nada trivial ou quimérica. Se ela realmente funciona nessa
pretensão, de fato Jaeger permite ver que é apenas enquanto o que
logra se manter atuante contra as vagas oposicionistas.
Tirteu, o
autor da elegia, na origem um gênero de poesia patriótica, onde especifica as leis espartanas, fazia tábula rasa dos protestos do demos espartano por
melhores meios de vida após a guerra de subjugação da Messênia.
Na poesia patriótica de Tirteu, o ideal espartano de subjugação completa da vida do indivíduo ao
objetivo militarista do Estado escravocrata, é bem um
estabelecimento supraterreno
da realização virtuosa,
o nome
dos que batalharam pela pátria tornando-se
glorioso, e não havendo nada glorioso além do
serviço prestado à pátria.
O
nome que resta, muito
“além” de qualquer importância da vida,
como dos que conservaram
até o fim o
imperativo da virtude que é jamais fugir do
campo de batalha,
jamais
se deixar escravizar. Porém
não havendo a mera possibilidade disso
fora da instauração da guerra pela escravização da
Messênia
por
Sparta.
A
luta de vinte anos pela escravização dos messênios torna-se um
clássico na construção da antítese de
Tirteu, amparada
na anfibologia da glória do senhor definida apenas
como
o oposto do opróbrio do escravo – como bestas, “vergando sob duras
cargas”, tendo que ceder
metade de tudo o que ganham aos dominadores, depois sendo obrigados a manifestar profundo pesar quando
qualquer
daqueles
morre. De
fato a poesia de Tirteu tem por motivação a insurreição dos
messênios, anos após a guerra inicial, que os espartanos novamente
dominaram muito pelo fascínio que aquela poesia exortativa provocou.
Mas importante é o modo como Jaeger parece ter querido articular
essa atuação ao que pôde reunir como traços de temperamento e
costumes socialmente documentados, assim como da cultura. Ele não
escondeu que refletiam factualmente os adornos retóricos da mensagem
invariável de exortação à submissão cega. É curioso que na
parte da Paideia consagrada a Sparta, a consciência crítica tenha
comparecido, mesmo que sob certa reserva, mas ao longo da obra a
perspectiva histórica reflita apenas simpatia irrestrita.
A reserva se expressa bem nitidamente no modo pelo qual Jaeger
tenciona justificar a unidade educativa do militarismo espartano. (p.
110) Informando que foi Aristóteles quem o atribuiu como traço
unilateral daquela Cidade-Estado, Jaeger raciocina em termos do devir
possível desse dado. Por um lado, para a frente, de fato teve um
resultado desastroso. Após a vitória na Guerra do Peloponeso,
segundo Jaeger, “a antiga disciplina espartana surgiu
involuntariamente à luz do uso maquiavélico que dela fazia Sparta”,
investida, conforme a melhor expressão de Rostovtzeff, “em seu
novo papel de rainha dos mares.” (op. cit. p. 212)
Se Rostovtzeff cobre num capítulo inteiro os problemas que Sparta
teve que enfrentar nesse status, especialmente sua dívida para com a
Persia e a resistência dos descontes subjugados, Jaeger, em um
parágrafo, resume a situação ao essencial no plano interno,
mostrando como foram as instituições da própria Cidade-Estado
corroídas. O dinheiro entrou a rodo, mas a torrente monetarista numa
sociedade que até aí mal o conhecia, implicou a suspeita traduzida
num oráculo, de que acarretaria ambição fatal à tradição. De
fato, conforme Jaeger, “Nesta época, dominada por uma política de
expansão" calculista ao estilo de Lisandro, o general
espartano vencedor de Atenas ao fim de prolongada série de
hostilidades, “em que os Lacedemônios se tinham apoderado
despoticamente das acrópoles de quase todas as cidades gregas e as
liberdades políticas das chamadas cidades autônomas haviam sido
todas destruídas”, é que ele situa a distorção da disciplina em
dominação maquiavélica.
Mas, para trás, a origem militarista é
o que explica a conservação do tipo racial puro em Sparta, o fato
do seu militarismo ser a conservação mais perfeita do modo de vida
das hostes dórias assim como era no momento da aportação invasora.
Foi Karl Müller quem a conceituou assim, e Jaeger apoia sua
perspectiva do “antigo militarismo espartano como a sequência de
um estado antiquíssimo da civilização dórica. Os Lacônios o
teriam conservado desde a época das grandes migrações” de que
resultara a ocupação do território pelos pioneiros. (p. 111)
Mas na organização da Cidade-Estado, os representantes da estirpe
racialmente puros eram apenas uma minoria, embora dominante, e a
organização mesma um produto tardio da fixação: “Sob o seu
domínio estava uma classe popular, livre, operária e camponesa, os
periecos, bem como os servos hilotas, a massa dos submetidos, quase
sem quaisquer direitos”. A história da fixação é pois a das
guerras de conquista dessas populações localizadas no território,
como a vizinha Messênia reduzida à escravidão.
A organização mesma da classe dominante, que na singularidade da
Cidade-Estado definia contudo a própria “Polis” enquanto o
status da cidadania, traduz o melhor possível o que resultou desses
componentes históricos: “A assembleia do povo espartano não é
outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Limita-se a votar
SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do conselho dos anciãos.
Este tem direito de dissolver a assembleia e
pode retirar da votação as propostas com resultado desfavorável”.
Além disso, “ o eforato é a autoridade mais poderosa do Estado e
reduz ao mínimo o poder político da realeza”, porém atuando como
poder moderador entre os senhores e o povo, concede a ele apenas “um
mínimo de direitos e conserva o caráter autoritário da vida
pública...”.
Jaeger não esconde também o caráter repressivo da educação da
classe dominante, na medida que orientada para a coibição de
qualquer mudança. Mas é sua análise desse item que lhe permite
construir a perspectiva da Paideia. Ou seja, o exame da paidéia
espartana não deve obscurecer o fato de ser o sustentáculo de todo
o traçado da "Paidéia", a obra de Jaeger sobre a “formação do
homem grego”, conforme o subtítulo, que na realidade é uma
reflexão única, devido ao seu tão grande alcance, sobre o sentido
da educação como da cultura humanística e histórica em geral.
Ele
procede assim de modo orgânico, instituindo um sentido totalizante,
um verdadeiro processo educativo, a partir da lenda de Licurgo como
estadista criador da organização de Estado em Sparta. Considera não
haver dúvida sobre a falsidade da hipótese de uma “constituição
de Licurgo” originária, tendo somente um status de lenda ou
tradição “secundária”. Porém asseverando que não se
pode eliminar totalmente a questão sobre até que ponto Licurgo
contribuiu na elaboração das leis espartanas.
Ora, o certo é que o
interesse aí reside em saber como e por que essa lenda se afirmou
tão generalizadamente na Grécia. Conforme Jaeger, foi a luta do
século IV por uma “possibilidade da educação” dependente “em
última análise de se conseguir uma norma absoluta para a ação
humana”, assim ação num sentido de ethos, conduta orientada, não
como simples atuar funções utilitárias, que produziu ou consolidou
essa lenda. Na verdade a influência de Sparta se conservou mesmo após o século IV, como um referencial de rusticidade saudável oposta ao que nos impérios se motejava como o artificialismo afetado de Atenas, uma antítese que Sexto Empírico exemplifica e reporta bastante bem no "contra os retóricos".
Conforme Jaeger, tudo o que sabemos sobre a significação de Sparta
no mundo grego e sobre a constituição de Licurgo “se formou de
acordo com uma teoria posterior sobre o Estado e a educação. Nesse
sentido é pouco histórica. Para compreender seu significado exato,
é preciso levar em conta que ela surgiu na época mais florescente
da especulação grega sobre a essência e os fundamentos da
paidéia”. (p. 114)
O significado histórico do século IV aí é interessante, pois,
como vimos, na verdade Jaeger recusa totalmente que os movimentos
genuínos dele, o florescimento das escolas pós-platônicas da
filosofia, seja integrante da Paideia autenticamente grega. Uma vez
que elas integram o helenismo como era que se inicia com a conquista
macedônica, isso teria certa justificativa. Porém não de fato,
como já acentuei com Bréhier, por que são essas escolas elas
mesmas gregas e somente nelas a Paidéia já não é o que decorre de
premissas do saber filosófico, vem a ser a súmula ou objetivo
explicitado do saber. O escopo da recusa jaegeriana de prosseguir a
Paidéia após Demóstenes, é evidentemente centralizar o platonismo
como o para-si do que tudo o mais na Grécia é o em-si.
Esse é pois
o significado do seu século IV, em que o modelo espartano torna-se
de interesse fundamental: “Recorda-se constantemente a aprovação
délfica da 'constituição de Licurgo', em oposição à lei
meramente humana e à relatividade da democracia”. Nesse modelo
platônico da Grécia, como vimos, só haveria posição paralela em Xenofonte,
que se torna altamente valorizado na Paidéia.
É assim que nesse ponto em que se constitui a característica
orgânica da paidéia espartana como a pedra angular da Paidéia
de Jaeger, o sentido do platonismo é assumido como do inteiro século
IV de tal modo depurado: “Todas as fontes que possuímos
inclinam-se a apresentar a disciplina espartana como a educação
ideal. Para os homens do séc. IV a possibilidade da educação
dependia, em última instância, de se conseguir uma norma absoluta
para a ação humana. Esse problema encontra-se resolvido em
Esparta”. Jaeger chega a assumir que “sem o interesse ardente
daquele movimento educativo por Esparta, não saberíamos nada sobre
ela.”
Neste século, portanto, é que se consolida a significação
grega do “cosmos espartano” em termos de “um sistema consciente
e coerente, e que a priori acreditava que o mais alto fim do
Estado era a paidéia”, ou seja, na definição formal de Jaeger,
“a estruturação da vida espiritual baseada em princípios e
sistematizada de acordo com normas absolutas”.
Se Licurgo existiu, mesmo que tenha criado a grande rhetra, a
constituição que Tirteu no século VII já conhecia, isso não
explica as origens da educação espartana assim como era quando
Xenofonte a apresenta, segundo Jaeger. Reflete em grandes linhas uma
origem que a Jaeger parece ter sido “a antiga nobreza grega”, mas
que evolui evidentemente, já que apresenta-se comum aos que não
eram nobres.
O singular aí é que essa “participação de todos os
cidadãos espartanos na educação”, enquanto militarista,
“torna-os uma espécie de casta aristocrática”. O que seria
tanto mais compreensível se os cidadãos em Sparta são apenas a
classe dominante sobre as populações subjugadas, porém o que
Jaeger focaliza nesse ponto é apenas a unidade orgânica,
totalizante, da educação. Assim transitando decisivamente a uma
“visão com” a classe dominante ou a Sparta histórica, desde a inicial "visão por trás” como da reconstituição das
fontes por ou para uma exposição onisciente.
Desde aqui, pois, Sparta e Jaeger prosseguem numa comunidade de
perspectiva que funciona tão bem que mesmo o que poderia parecer
criticável não é comentado como tal, valendo como que por si só.
O efeito é algo jocoso. Reconstituindo a vida cultural a partir das
escavações, informa a introdução da música, na época de Tirteu,
por Terpandro de Lesbos, inventor da cítara de sete cordas, que foi
chamado pelos cidadãos espartanos para dirigir o coro das festas
religiosas e organizá-lo segundo o sentido de suas inovações.
Ora,
não se pôde subsequentemente mudar nada do que assim se introduziu:
“A Esparta das épocas subsequentes adotou rigidamente os padrões
de Terpandro e considerou toda a evolução posterior uma revolta
contra o Estado”. E essa observação calha à ressalva que Jaeger
está procedendo, sobre a identidade “de essência da vida
espartana à vida alegre das demais cidades gregas”, não obstante
“o sombrio rigor que foi considerado” essa mesma essência. Ele
defende em seguida a própria “rigidez” da norma terpandra na
música em Sparta, pois “mostra até que ponto a antiga Esparta
encarou a educação musical como coisa essencial para a formação
do ethos humano, na sua totalidade”.
De fato a evolução da cultura musical em Sparta não se limita à
contribuição de Terpandro, que como vimos só define os padrões
instrumentais. Jaeger reporta assim o marco histórico dos versos de
Alcman escritos para o coro das jovens espartanas. Ele viera de
Sardes e naturalizara-se cidadão espartano. Seus versos introduzem
“com perfeita consciência o dialeto da Lacônia na lírica coral”
(p. 129). Contrasta assim com a tradição homérica das elegias de
Tirteu. Nesse contraste, as letras corais de Alcman, em língua
pátria e popular, “jorram do humor jovial e da força realista da
raça dórica, que só em traços isolados se manifestam na
estilização homérica das elegias de Tirteu”.
Nas suas canções,
Alcman registrava os nomes das jovens do coro, mas também aí temos
uma documentação do temperamento comum espartano, pois Jaeger
noticia que as canções apregoavam, dessas jovens, “os seus
méritos e as suas pequenas ambições e invejas”. A rivalidade era
assim um traço típico. As canções de Alcman “transportam-nos
com idêntica vivacidade e realismo às rivalidades dos concursos
musicais da antiga Esparta e revelam-nos que o espírito de emulação
do sexo feminino não era inferior ao dos homens”.
Mas a estilização homérica da língua elegíaca de Tirteu não é
algo de inferior importância. É na verdade a substância desse
capítulo cujo tema é o ethos educativo. A transformação espartana
da aretê heróica como ideal homérico, em heroísmo do amor à
pátria, é reportada em ato no terceiro dos poemas conservados de
Tirteu. Aqui Jaeger reporta ter feito obra historiadora, tendo sido o
advogado da causa de sua autenticidade, contra as versões que a
negavam (p. 121).
Atribuindo pois a Tirteu esses versos que segundo
Platão nas Leis, melhor refletem a essência da aretê espartana,
nesse ponto Jaeger chega a falar de “crise” do antigo ideal
homérico “no período do crescimento da cultura das cidades”,
assim pronunciando-se sobre o que sua perspectiva totalizante
constitui de hábito em termos de empréstimo e continuidade. Se
Tirteu empresta versos e ideias do vocabulário de Homero (p.120), a
transformação de sua aretê assoma aqui como o fenômeno mais
importante.
Vale registrar que os versos de Tirteu citados por Jaeger
tem a mesma estrutura retórica que o famoso trecho de São Paulo
sobre o amor na epístola aos Coríntios, em que a soma das vantagens
que alguém possa possuir resulta a nada uma vez que nunca iguala o
simples ter amor. Em Tirteu, trata-se dessa preminência atribuída
porém ao heroísmo combatente: “Eu não quereria guardar memória
de um homem nem falar dele devido à virtude dos seus pés ou à sua
destreza na luta, ainda que ele tivesse a força dos cíclopes e
ganhasse em velocidade do trácio Bóreas... E ainda que fosse mais
belo que Titono e mais rico que Midas e Cinira, mais régio que
Pélops, filho de Tântalo, e dotado de uma língua mais lisonjeira
que Adrasto, se tivesse todas as glórias do mundo, mas não
possuísse o valor guerreiro, não quereria honrá-lo”.
Mas qual esse valor? Conforme Jaeger, nada menos que “uma
autoridade moral e política totalmente nova” e “em favor da qual
se empreende uma nova ação educativa”, ainda que expressa “por
trás das formas e dos primitivos ideais homéricos”. Nesse ato
estético pelo qual “o ideal homérico da aretê heróica
transforma-se no heroísmo do amor à pátria”, Tirteu é “o
poeta” que “quer criar um povo, um Estado de heróis”. Ora, se
o imperativo único é jamais fugir no campo de batalha, o ideal
desse heroísmo é nada além do sacrifício individual, a famosa
ética da bela morte, como da morte na guerra, única
dignificante.
Naturalmente, se “o poeta aspira a impregnar deste
espírito a vida de todos os concidadãos”, não é para criar um
povo de suicidas, mas sim para criar um tipo, na sociedade
militarista aristocrática, que faz a contrapartida da rivalidade
cotidiana dos jovens, homens e mulheres. É o vencedor, que não
fugiu da batalha mas que dela regressou vivo, salvando a pátria e
nela podendo se estabelecer como cidadão exemplar. Como antes
salientei, porém, a exemplaridade do vencedor é construída apenas
pelo seu contraste ao vencido messênio que Tirteu faz ver como a
vida penosa, miserável, indigna de ser vivida, dos escravizados. A falácia ética, por assim expressar, é aqui notável, já que a oposição do mal e do bem, o penoso labutar do escravo e a satisfação incontestável do senhor, demonstra apenas o ímpeto dominador, não tendo havido qualquer tentativa messênia de escravização dos espartanos, que se saiba. O fundamento ético é portanto a satisfação oriunda da rapina, algo que aparentemente escapa a Jaeger.
A
lírica torna o contraste absoluto entre o bem e o mal, os valores
humanos assim alçados a eterno ideal do bem-aventurado em seu
contraste ao condenável. Ela elide pois, a história, onde a
escravidão, recursivamente, foi apenas correlato do próprio esforço
da guerra escravizadora.
Entre a epopeia e a lírica elegíaca – como Jaeger salienta, ao
contrário do que se diz, o gênero “elegia” não se limita a
prantear os mortos, pois na Grécia é o metro da exortação ao
patriotismo, assim também no efésio Calino (p. 126) – só é
preciso acrescentar ao fundo mítico dos feitos da nobreza homérica
um fator de endereçamento direto aos ouvintes, os concidadãos.
Assim o epos do valor se transporta ao gênero da exortação. Jaeger
ressalta que um endereçamento desse tipo já devia estar contido na
própria epopeia, ao menos como possibilidade interpretativa: “Assim
o sentiram os espartanos. Para criar a sua elegia, Tirteu precisou
apenas transferir para a realidade das guerras messênicas o poderoso
ethos que anima as cenas homéricas”.
Há porém muito mais envolvido nessa transformação, se ela
introduz um verdadeiro ethos na história, ou seja, um fundo
de sentido antropológico-social que se contrasta a outros na sua
evolução autônoma. Aí, pois, Jaeger logra construir uma oposição
mais profunda que a nietzschiana, entre os ethoi guerreiro e
sacerdotal, como entre a potência e o seu recalcamento posterior.
A oposição de Jaeger deve ter tido uma influência mais poderosa
em sua época, pois não assimilável apenas pelo populismo desejoso
de ação imediata e irrefletida. Ela expressa assim dois percursos
históricos do “homem político”. Para Jaeger, “é com a
elegia de Tirteu que se inicia o desenvolvimento da ética do
Estado”, não com o ideal jurídico que ele estuda em seguida na
formação da cidadania jônia e ateniense. Assim o contraste vai
resultar na personificação nietzschiana da antítese entre gregos e
cristãos, mas sendo em Jaeger mediada por esses outros gregos, os
individualistas que se criam do jurídico à democracia. São estes
pois, que podemos entender como antecessores dos individualistas
cristãos, interessados só na salvação de sua alma pessoal.
O
contrário é verdadeiramente grego, nesse sentido de genuinamente
homérico, pela ausência de traços psíquicos na constituição do
homem. Não havendo a noção da alma volitiva individual em Homero,
o que nele se denota a psyché é apenas sombra ou imagem, eidolon, do corpo. Mas aquele que se sacrifica de um modo
dignificante, como pelo amor da sua pátria, “se eleva a um ser
mais alto acima da existência comum”, resultando que “a pólis
concede-lhe a imortalidade do seu eu ideal, isto é, do seu 'nome'”.
(p. 125)
Mas nesse ponto o sintomático é que a citação de Tirteu por
Jaeger não se refere ao soldado caído, ao lado do qual a
elegia, que dele registra a memória, “sublinha a figura do
guerreiro vencedor”. A citação se refere somente a este último:
“Honram-no jovens e anciãos, a vida oferece-lhe distinção e
singularidade, ninguém se atreve a prejudicá-lo ou ofendê-lo.
Quando chega à velhice, infunde um respeito profundo, e onde quer
que chegue todos lhe dão lugar”. (p. 123)
Ora, que a oposição construída por Jaeger entre estas duas
estruturas antropológico-sociais é paralela à de Nietzsche, vemos
pelo fato de que produz efetivamente uma genealogia da moral: “Só
o crescente menosprezo pelo Estado, próprio das épocas seguintes, e
a progressiva valorização da alma individual, que alcança o apogeu
com o Cristianismo, possibilitaram aos filósofos tomarem o desprezo
pela glória por uma exigência moral”. Desnecessário salientar o
quanto Jaeger está assim vivamente induzindo à escolha.
Comentando
a citação que vimos ter destacado de Tirteu, aduz: “Na restrita
comunidade da primitiva polis grega isto não são apenas belas
palavras. Esse Estado é realmente pequeno, mas tem na sua essência
algo ao mesmo tempo heroico e profundamente humano. Para os gregos,
e mesmo para toda a Antiguidade, o herói é, pura e simplesmente, a
mais alta forma de humanidade”.
O platonismo jaegeriano não é pois a religião da alma,
inversamente à apresentação sintética de Goldschmidt. Ele é a
depuração genuinamente grega, ou seja, “política”, da Paideia
cuja origem é a kalokaghatia, o ideal do belo e bom formativo da
nobreza homérica e conservado na organização da Polis espartana.
Mas assim como exemplarmente contraposta à oposição nietzschiana
de grego e “jurídico” judeu-cristão, posto que a Grécia
geo-política se mostra ela mesma, de modo historicamente muito mais
consequente, a origem dos dois vetores, a Paidéia de fato decide
sobre ambos nessa questão do originário.
Como vimos, a antítese
não atrapalha a generalização dos “gregos” ou até de “toda
a Antiguidade” em favor do Estado cujo desenvolvimento ético se
inicia segundo Jaeger, em Tirteu. Somente em Esparta, portanto, temos
a preservação e a expansão do que é genuinamente “grego” em
sentido primitivo. Esse status é porém ambíguo, o que explica a
duplicidade das vias.
Por um lado, é um só, a primitiva ou genuína
Grécia é a nobreza homérida. Mas por outro lado, houve a clivagem
da emergência da Polis, a organização da comunidade cidadã, e
esse é o sentido de primitivo que concentra a religião do Estado
como o “matiz político” que “a ideia da glória heroica
guardou, aos olhos dos gregos”.
Jaeger considera o “homem
político” como um ser que inversamente ao objetivo da salvação,
o tem na perfeição, possivelmente alcançada na “perenidade da
sua memória na comunidade...”. Esse “homem político” nasce
pois, em Esparta, e o vetor jurídico da individualização na Polis
ateniense assinala um desenvolvimento irredutível ao seu.
A transformação do político em Jaeger tem inúmeras conotações
na ciência histórica e social. Ela permite conjecturar sobre a
formação do nacionalismo alemão entre as duas guerras, de um modo
menos prejudicado pela preminência de Weber. Vemos que a concepção
de Jaeger salva o Estado do determinismo capitalístico que Weber
conceitua opositivamente à “comunidade” primitiva. Esse
determinismo ecoa nitidamente a kritikultur anti-estatal de
Nietzsche. Mesmo que o próprio Weber, assim como seu irmão Alfred,
pudessem estar interessados numa evolução da legalidade que
libertasse o regime político do determinismo capitalístico, a
oposição era a mesma que inspirava todos os anarquismos dessa
época, e paralelamente o repúdio geral ao capitalismo de livre
concorrência. Em Jaeger vemos reunidos ambos, o Estado e a
comunidade, justamente em seu sentido suposto originário pela mentalidade culturalista da época, isto é, não
individualista.
Só do outro lado da oposição é que fica lotada
aquela individualidade que Weber atrelou ao capitalismo como Estado
contemporâneo suposto por isso burocrático-racional-legal. O
capitalismo definido por Weber evita o problema da “superestrutura”
inerente à definição marxista, na medida mesma em que preserva a
conjunção de inteligência e modo de produção conceituada
pioneiramente por Marx na sua noção de “praxis”. Porém assim
coloca um problema historiador considerável, a aposta weberiana na
ousada afirmação de que antes do capitalismo nunca houve formas
impessoais de contrato, livres da hegemonia patrimonial de autoridade
centralizadora e cuja representação era carismática, de tipo
mágico ou religiosa.
A riqueza livre e circulante só seria possível
no capitalismo contemporâneo, a geselschaft como mundo de
inteligência, mais do que técnico-industrial, financeira-legal,
mundo das letras de câmbio resgatáveis anonimamente, e centrado no
modo da ação objetiva que caracteriza a empresa de negócios,
inversamente aos modos de ação por tradição ou ritual.
Seria bem esperável que os historiadores da Grécia levantassem
dúvidas pertinentes à reserva da circulação de papeis à
contemporaneidade, e particularmente Rostovtzeff nunca acreditou
verdadeiramente nisso. Ele fala assim fluentemente do “capitalismo
antigo” na era helenística. Não obstante a forma de governo ser
centralizado, “o crédito e as atividades bancárias” tornaram-se
extremamente importantes num mundo antigo unificado pelos costumes
gregos, inteiramente isento de variação local, a partir da expansão
desse capitalismo que tornou conveniente a adoção universal da
língua grega unificada, o koiné. (p. 272)
Sob o império macedônio, Atenas usufruiu de certa liberdade, até
mesmo restaurando a constituição democrática, porém nunca liberta
como um Estado independente. O domínio macedônio se agravou depois
que ela tentou uma sublevação, aliando-se a Sparta e Egito, na
guerra cremonídia do século III. Conforme Rostovtzeff, se a
situação afinal estabilizou-se numa semelhança notável com o
clima do quarto século, foi somente porque nele a regra era a guerra
em vez da paz. (op. cit. p. 261)
A Macedônia estava sempre em
guerra com seus vassalos e aliados gregos, especialmente as ligas
Acaia e Etólia. Os Estados mesmos não tinham paz interna pois nas
monarquias somente o rei absoluto conseguia abafar as lutas
partidárias da nobreza, mas no segundo século a realeza não
dispunha de grandes domínios territoriais ou exército forte, assim
como no Egito e na Síria, respectivamente convulsionados por
governos incompetentes e rebeliões internas.
Sobre o capitalismo antigo, Rostovtzeff considera que as monarquias
helenísticas, intensamente monetarizadas, haviam herdado as
condições econômicas criadas pelas Cidades-Estado gregas. (p. 267)
A Grécia tornou-se preponderante absoluta no comércio internacional
do século III, mas logo depois Alexandria ficou com a posição
central, tanto no comércio como na indústria. Na Grécia, Rodes e
Delos tornaram-se proeminentes, destacando-se entre as Cidades-Estado
que se tornaram prósperas nessa época, por terem ambas posição
geográfica estratégica, situando-se nas rotas que ligam o Norte e o
Sudoeste com a Grécia e a Itália.
Mesmo com a ascensão das
capitais helenísticas como Alexandria e Pérgamo, a Grécia
continuava tendo importância, e após referenciar as rotas que entre
Ásia e Oriente Médio ligavam desde o Egito até a Índia,
Rostovtzeff considera que “Em suma, o mundo helenístico torna-se
um grande mercado controlado pelo mercador grego ou helenizado, e
pelo fabricante grego. Até mesmo reporta que “o gênio grego”
veio em auxílio das pretensões de expansão econômica de reinos
como o Egito, sistematizando em manuais a pioneira tentativa de
estabelecer uma agricultura em bases científicas, assim como a
zoologia grega contribuía no aperfeiçoamento da pecuária.
Em
geral as realezas incentivavam empreendimentos dos gregos fixados em
seus domínios. Se o capitalismo comercial e industrial antigo
atingiu um porte tão proeminente, a questão de saber porque não
resultou numa revolução da produção como na modernidade, parece
subentender-se resolvida na observação de Rostovtzeff acerca da
relativa pequenez das classes compradoras urbanas, comparadas à
estabilidade das agriculturas nativas.
Ele não acusa assim o
escravismo como a causa, ainda que fosse também equacionável. Sua
perspectiva parece-me pois contrária à de Weber, posto que a
diferença seria de grau e não de gênero. Mas também quanto à
questão social o vemos, pois mesmo que o progresso na manufatura,
agricultura e comércio resultassem numa classe média culturalmente
homogênea, os conflitos derivados da crescente desigualdade de
pobres e ricos, trabalhadores e proprietários, e mesmo de nativos e
gregos, foram proeminentes e nunca resolvidos, conforme Rostovtzeff.
As classes opostas são, como vemos, inerentes à articulação da
cidadania, não ocorre menção a nietzschianas “revoltas de
escravos” , como o que seria fácil ignorar ao modo de mero item
inerente à manutenção da segurança pública no antigo regime.
Ao
contrário, Rostovtzeff fala da “condição humilhada do povo que
dá origem a relações hostis entre as classes altas e baixas, tanto
na cidade como no campo. Essa hostilidade, portanto, já não se subsume ao conflito grego de nobres e plebeus, é propriamente de classe econômica, toma a forma de greves e
explode, de vez em quando, em "revoltas das populações nativas,
revoltas muitas vezes lideradas por sacerdotes”, o que era o caso
particularmente comum no Egito, “embora fossem, naturalmente,
sufocadas pelas tropas mercenárias” - os soldados por salário que
é uma invenção desse período (p. 278).
A era helenística conduz
pois a questões sociológicas não inteiramente previsíveis pela
acomodação da era anterior, não obstante haver relações
indubitáveis como o próprio conceito do período, designado
“helenismo” ou grecização cultural, denota. Sem dúvida, para
Rostovtzeff, “a civilização da chamada era helenística é
realmente grega”, seguindo a pauta do regime instituído na Atenas
do quarto século, que tivera objetivo civilizatório pan-helênico. (P. 283) Mas Rostovtzeff permite observar que o problema é justamente
este. Ao mesmo tempo que a Grécia influi mais do que na cultura
letrada, na própria armação dos regimes e economia das monarquias
helenistas, neles decorrem transformações sociais irredutíveis ao
já conhecido, inclusive na Polis. Assim, a expansão do gênio grego
acarretou um verdadeiro renascimento cultural no Oriente, entre o
Império romano e o início do feudalismo, como na Persia, Índia,
Armênia, Geórgia, e na gênese da era feudal, na Arábia.
Já a
cultura do Império Romano se desenvolve a partir das bases culturais
da Grécia do terceiro século. (p. 285) A deusa Tique, de
Eutíquedes, em Antioquia, estatueta produzida em mármore, tornou-se
o modelo popular de deusa dos ambientes urbanos. A boa fortuna
sentada, segurando espigas de cereais, com a cabeça coroada, rosto
simpático e confiante, e os pés sob o rio Orontes, representado por
um menino nadando, está hoje restaurada segundo réplicas do
original, no Vaticano, em Roma.
Na Grécia particularmente, os conflitos sociais cresceram a ponto de
interferir com o desenvolvimento interno das cidades, e as realezas
helenísticas não conseguiam apaziguá-los. Rostovtzeff reporta
assim que o caso mais conhecido é justamente o de Esparta. A
filosofia helenística na Grécia havia suscitado um ramo de reflexão
política que reduzia “o problema de riqueza e pobreza como uma
questão de moral pessoal” (p. 280). Bréhier também o enfatiza,
mostrando que gêneros de diatribes dessa época faziam personificar
a pobreza e a riqueza competindo, endereçando-se ao receptor a fim
de convencê-lo de serem cada uma delas o meio de vida melhor ou
menos prejudicial independente das aparências. Segundo
Rostovtzeff, a concepção da luta de classes, tanto
já existe na Antiguidade, influenciando amplas regiões imperiais,
como era produto das massas depauperadas, independente de
especulações dos filósofos.
Rostovtzeff aduz assim que em Esparta, com o
acirramento da cisão entre a aristocracia e proletariado, o rico e o
pobre, houve entre os próprios espartanos, além de periecos e
hilotas, “crescimento de ideias comunistas e socialistas, a
convicção de que Esparta havia sido outrora a terra onde o ideal do
comunismo fora inteiramente realizado e também um ardente
patriotismo que se recusava a tolerar a insignificância política do
país”.
Após a vitória de Tebas contra Sparta, na batalha de Leuctras,
que provou a superioridade da inteligência sobre a força devido ao
êxito da estratégia de Epaminondas sobre a confiança na força bruta espartana, a situação econômica dos espartanos se
deteriorara principalmente devido à libertação da Messênia pelo
general tebano. Mas Sparta não chegou a ser subjugada pela
Macedônia, ficando livre para apoiar rebeliões, que como vimos
porém, relativamente a Atenas, nunca chegaram ao êxito.
O rei Ágis IV de Sparta, no terceiro século, tencionou uma reforma
geral nesse sentido, cancelando as dívidas dos cidadãos
particulares e distribuindo as terras confiscadas pelo Estado a todos
os cidadãos, espartanos (4.500) e periecos (15.000). Mas se a classe
dominante apoiou a abolição das dívidas privadas, rejeitou a
reforma agrária, e liderada por Leônidas, que entronizou em
seguida, derrubou Ágis. Porém o filho de Leônidas, Cleômenes,
realizou o plano de Ágis de modo muito ousado, utilizando-se da
violência quando necessário, chegando a obter o apoio do
proletariado das cidades gregas no sentido de unificação nacional.
Porém encontrou por isso a resistência do rei macedônio, Antigono,
que frustrou o plano.
Em seguida, Nabis tomou o poder em Sparta, com
intuito de realizá-lo, mas já nessa época Roma firmava sua
superioridade política sobre a Grécia, e após Nabis, Sparta
abandonou o ímpeto reformista, deixando de ter importância na
Grécia em geral.
O cômputo de Rostovtzeff sobre a história grega define a situação nacional da Grécia sob o império romano como de total fracasso. Mesmo sendo
a Grécia a fonte da cultura helenística, Pérgamo e Alexandria
rivalizavam na posse das mais proeminentes bibliotecas, e o Museu
(Lar das Musas) desta última foi a primeira sociedade cultural
mantida pelo Estado, como se representasse uma instituição
universitária em plena Antiguidade. (p. 302)
Vimos que Jaeger não
considerava de modo muito diverso, posto que a seu ver não são
deriváveis da forma política da Cidade-Estado grega, os regimes
subsequentes. Se isso é algo evidente tratando-se dos impérios
helenísticos e romano, excetua-se o tipo de militarismo peculiar aos espartanos, isto é, inversamente ao exército servir ao Estado, é este que existe em função do exército. E entretanto um juízo bem notável, pois relativiza a conexão da democracia ateniense, em termos do que teria
ressonância com o moderno liberalismo, com o espírito genuinamente
grego, que ele localiza outrossim, como vimos longamente, em Sparta.
=====
Sparta e o platonismo
O intuito de Jaeger em sua própria época, que tipificou
um impulso do pensamento de Estado tão peculiar no bojo da
problemática da “civilidade” contemporânea, é sem dúvida de
estabelecer uma conexão. Sparta, o
único regime grego inteiramente voltado à guerra, não era tão isolada num
meio de Cidades-Estado letradas e democráticas, se o heroísmo
que ela logrou transformar em valor educativo num sentido cultural
pertinente manteve-se como um ethos inerente à Antiguidade. Mas
o ethos comunicável através dos séculos é irredutível à singularidade na origem. Na Antiguidade o valor guerreiro é uma
questão sociológica e
ética, mas em Sparta é um regime de Estado
e um fundamento do
direito.
E o principal na tese de Jaeger, a ligação de Tirteu ao platonismo, decorre
dessa irredutibilidade postulada para o problema espartano na
geopolítica grega.
Já acentuei bastante a
ligação que Jaeger estabelece entre Sparta e o platonismo, definida
na parte mesma da Paidéia consagrada
a Sparta. O regime
estatal e o fundamento “legal” da época
áurea da Lacônia foram recolhidos por Platão como um “tesouro
espiritual” que
fundamenta a sua filosofia. Assim
o intertexto fundamental do platonismo não é a filosofia dos
naturalistas, não obstante Jaeger ter mostrado o quanto a escola médica de Cós influencia Platão, assim como também as matemáticas. Mas sim os poemas
patrióticos,
especialmente Tirteu.
Pela tessitura dos poemas formativos, Platão chega, nas Leis, “à
determinação de duas formas fundamentais que parecem representar a
totalidade da cultura política do seu povo: o Estado militar
espartano e o Estado jurídico original da Jônia”. (p. 107, 108) É
verdade que ninguém estudou com tanta generosidade
a ambos como faz Jaeger na Paideia, mas como
vimos, a classificação nele tem
consequências de
ruptura radical na história política e cultural. Sparta torna-se o
verdadeiro fundamento do Estado, a determinação jurídica deságua
num processo de
solvência do político pela "degenerescência" do individualismo.
Não
há que separar ética, comunidade e Estado. O
“político” em si é um Estado comunitário ético que
se produz pela unidade educativa do militarismo como
ideal viril do guerreiro.
Como
regime, a unidade
educativa traduz a
preservação dos valores formativos da nobreza originária, que
assim evolui, generalizando-se como ideal da humanidade.
A Sparta de Jaeger, na
era clássica da Polis grega, nada permite antecipar do reformismo
proletário documentado por Rostovtzeff após a
libertação da Messênia até
aí escravizada,
e a ascensão do conflito de classes típica da era helenística.
A
dependência do regime spartano à propaganda do escravismo
nobilitante, que os poemas patrióticos veicularam, poderia induzir à
questão do que aconteceria se Sparta perdesse o poder de dominação
sobre os messênios. A julgar pelo texto jaegeriano somente, Sparta
se desfaria como sociedade. Assim, como não foi o que ocorreu,
podemos talvez aí deduzir uma lição histórica, ao contrário do
dito popular de que a história nada ensina.
A
propaganda do regime espartano
era
menos de valores éticos, no sentido elevado e
humanístico do termo, do que um expediente para assegurar um meio de
exploração econômica. E quando a contingência mostrou-se
desfavorável, foi fácil para Sparta, interiormente, mudar tão
drasticamente, do escravismo para o comunismo, não obstante ter
esbarrado com o obstáculo externo. Essa lição não
apenas invalida a propaganda neototalitária como a imperialista
info-midiática da atualidade, mas por igual,
inteiramente
o dogma marxistas das fases evolutivas dos modos de produção.
Na parte consagrada
a Platão, temos as
mesmas consequências originais
de Jaeger, Sparta
como a preservação de um unitário sistema social da nobreza na origem, aplicadas à filosofia. Elas
permitem a Jaeger introduzir significativa
ruptura na história da recepção do platonismo, como ele mesmo
reporta.
A trajetória da
recepção que ele recobre não se detém especialmente na
subsequência feudal, e
não obstante ter
considerado a obra de Platão uma espécie de eixo de todo
desenvolvimento posterior, é
da tradução da
“República” por
Santo Agostinho na
“Cidade de Deus”, em
diante, recolhendo as consequências do neoplatonismo como
o ápice de todo
o devir do pensamento antigo, assim
como a influência do místico alcunhado Dionísio Aeropagita, que
a centralidade do
platonismo se torna
incontestável.
O
Renascimento é tratado em função dessa
continuidade do
feudalismo, em vez de
qualquer verdadeira
retomada da Antiguidade. O
ensino de Plethon em
Bizâncio é o
referencial que se transmitiu de
Constantinopla aos
latinos
do quatrocentos,
o que significa que
estes só teriam estudado Platão na perspectiva de Plotino.
É compreensível que o
interesse na recepção da modernidade capte
mais a atenção, uma vez que a esta
se associa de hábito
um
ambiente de total
superação da metafísica. O
texto de Jaeger obtém bastante mérito em informatividade ao mostrar
não ter sido assim, e, bem inversamente, referenciar
o cânon platônico nas
correntes principais.
Ele
desenvolve a história
do confronto dos platônicos do século XIX, cuja obra exegética se
amparou nos progressos da filologia, com os românticos,
especialmente Schleiermacher. Ambas
as escolas manifestam em comum a exclusividade da recepção do
platonismo em termos de teoria das ideias.
Mas a aplicação da
filologia determinou
romper drasticamente
com a posição inicial
da cronologia dos
textos platônicos.
O início dos estudos
platônicos modernos praticamente deve-se a Schleiermacher, assim
como a transformações dos parâmetros de estudos que conduziram “à
descoberta do verdadeiro Platão”, conforme Jaeger. (p. 582 e
segs.) Na
verdade o modo como o
expõe visa
inverter a ordem de
prioridades. Seria
do platonismo de Schleiermacher que se origina
a sua famosa
hermenêutica, não o contrário.
A
ênfase na
característica aberta dos diálogos, não
tendendo para um fechamento sistêmico, ao
contrário do procedimento do século XVIII que consistia na
depuração formal
da arquitetônica
metafísica como se
considerava
apenas qualquer obra de pensamento;
bem de acordo com o
romanticismo, o
objetivo de captar a individualidade espiritual expressa na obra,
considerando que ela
desenvolvera-se em íntima conexão com a vida filosófica de sua
época; e
o critério que permitiria classificar
os textos, de modo
tipicamente platônico construídos
por movimento vivo
interlocutivo em vez de
construção
demonstrativa na
gradação aproximativa. Por
esse critério
Schleiermacher
os considerava numa gradação
a certa meta ideal, como filosóficos
enquanto apenas introdutórios, e os
de caráter formal.
Estes três
delineamentos foram os
meios que teriam permitido “do problema repleto de
hipóteses, colocado ao exegeta pelas obras de Platão”, brotar
“um conceito de interpretação novo e mais elevado do
que aquele que até ali servira de
base aos filólogos circunscritos à gramática e ao estudo da
Antiguidade...”.
Não
obstante ter considerado o platonismo o intertexto
principal da filosofia posterior à produção do mestre, sublinha
aí a
filosofia alexandrina helenística como tendo desenvolvido “seus
métodos à luz da investigação da obra de Homero”, e
somente “a ciência histórica do espírito” foi
a que “alcançou no
séc. XIX o seu máximo apuro com a luta para conseguir compreender o
problema platônico”. De
fato, como Jaeger sublinhou, um dos mais difíceis problemas
“colocados pelos escritos da Antiguidade” - bem inversamente,
pois, à
tradição do divino
Platão como escritor de
clareza clássica.
Ora,
a viragem neokantiana da
filosofia, na transição cronológica ao século XX, coincide
com a superação do critério hermenêutico
romanticista pela
contribuição de Lewis Campbell. O escocês que reaplicando
critérios da filologia, propôs a
pesquisa das variações estilísticas imanentes aos textos
platônicos, mostrando assim características que eram comuns a três
períodos definíveis.
Os diálogos de estilo aproximável às Leis, estas que sem dúvida
foram obra de velhice, foram identificados nessa periodização mais
tardia. Invertia-se
desse modo o cânon romanticista, provando-se “serem obras maduras,
correspondentes à sua senectude, vários diálogos platônicos por
ele considerados primeiros e introdutórios”. (p. 585) Mas
valorizavam-se
por isso,
como a obra
madura, os diálogos
em que Platão questionava ou submetia
a teste a sua própria
teoria, como o Parmênides, o Sofista e o Político.
Ao serem puxados para
o centro da controvérsia, mostraram-se coincidentes
ao espírito da
época. Frente à superação da voga do
idealismo romanticista,
o retorno ao kantismo
que se seguiu representava “uma atitude de introspecção crítica”,
com exclusiva atenção
ao problema do conhecimento.
É interessante para a
história do neokantismo, especialmente na sua interconexão à
carreira de Heidegger, o
modo como Jaeger acentua, ao contrário do aristotelismo professo
deste último, o
interesse da época em refutar as críticas de Aristóteles à
teoria das ideias platônica. Não obstante, para Jaeger os
neokantianos assim apenas seguiam a opinião aristotélica da teoria
das ideias como cerne
do platonismo.
Em seguida reporta ele o interesse suscitado pela
questão da autenticidade das Cartas de Platão, que era
tradicionalmente negada
como textos apócrifos, sabendo-se
que existiam de fato, na massa da obra. As Cartas eram rejeitadas em
bloco no status de autenticidade desde
o século XVIII,
devido a ser indubitável constatarem-se
nelas
“peças e fragmentos
falsos”. Porém
desde a atenção de Eduard Meyer ao
texto, devido à
importância histórica do conteúdo das cartas, o problema se
recolocou, e Wilamowitz logrou provar a autenticidade das cartas
sexta, sétima e oitava, as mais importantes da coleção.
Ora,
se desta vez não fora a perioridização, mas a crítica da
autenticidade dos textos, o afetado pelas
descobertas filológicas, é
em que Jaeger pessoalmente se engaja. Ele não esperou pela prova da
autenticidade das cartas para refutar
profundamente a opinião neokantiana e aristotélica sobre o
platonismo como estritamente
a ontologia das ideias. A prova apenas apoiou o
que ele mesmo já havia concebido, e desde a época em que não
acreditava na autenticidade. Mudou
de opinião a propósito,
não apenas pelo
brilhantismo de Wilamowitz, mas por convir que a autenticidade
do conteúdo das cartas apenas calhava bem com o que já havia
deduzido de seu estudo minucioso e paciente dos outros textos,
(p. 587).
A seu ver, pois, o nexo
da interpretação de Platão como filósofo
das ideias com a reserva lógica dos problemas a ele
ligados, era um erro explicável pelo fato de que na velhice do
mestre, a controvérsia
no interior da Academia incidiu amiúde sobre a questão ontológica,
raiz da perspectiva
aristotélica a propósito do platonismo. Mas diálogos como o Críton
e o Gorgias, assim como o grande texto da República, seriam
bastantes na concepção de Jaeger para mostrar
que a teoria das ideias não era a única raiz do seu pensamento
filosófico, e a produção das Leis, mesmo nesse período tardio, o
comprova.
As cartas
autênticas mostram que o envolvimento de vida de Platão era
político, e essa era a
tese que Jaeger estava esposando sobre o platonismo na história da
filosofia.
Conforme testemunha
ele, “a
concepção sobre si próprio que Platão exteriorizara” na carta
sétima, a princípio desprezada por Jaeger, apoiava “em todos os
aspectos a interpretação da filosofia platônica” a que ele
próprio chegara, “à margem das cartas”, pelo trabalho exaustivo
do exame “de todos os diálogos do autor” (p.
589).
A propósito da relação
de biografia e filosofia, expressa que “Com efeito, a vida e a obra
são nesse pensador inseparáveis e de ninguém se poderia afirmar
com maior razão que
toda a sua filosofia não é senão a expressão de sua vida e esta a
sua filosofia. Para o homem cujas obras fundamentais são a República
e as Leis, a política
era não só o conteúdo de certas fases de sua vida, durante as
quais se sentia impelido à ação, mas também o fundamento vivo de
toda a sua vida espiritual”. (p. 588)
Mas o essencial a partir daí se torna o que Jaeger compreende como
“a política”. Um
cotejo desse trecho com o que ele dissera antes de Sócrates parece o
mais oportuno para ilustrar o problema que
podemos enunciar em torno da cisão habitual de ética e política.
Se o que vimos até aqui foi que Jaeger posicionou
a Paideia em torno da solução espartana do Estado como formulação
antropológico-social votada à
supressão dessa linha
divisória, tendo na educação precisamente o meio de o fazer, e
que para ele o platonismo é a sistematização conceitual da solução
espartana, como Jaeger
lida com a definição costumeira de Sócrates como introdutor da
ética na filosofia?
Sócrates
não é de fato por ele
apresentado como
alguém cujo conflito com o Estado refletisse
um objetivo consciente, ao
menos até onde se pode predicar algo assim de um grego: “Não
se julgue porém, que à finalidade política da cultura, tal como os
sofistas a conceberam, ele opõe o ideal apolítico da pura formação
do caráter. No objetivo, como tal, não
havia razões para tocar. Numa polis grega este objetivo tinha de ser
sempre e necessariamente o mesmo”. Porém, se o desprezo
da política o teria inviabilizado como educador em Atenas, “a
grande novidade que Sócrates trazia” era
visar “na
personalidade, no caráter moral, a medula da existência humana, em
geral, e o da vida coletiva, em particular”. (p. 540) Se
ele pensa o social é
apenas por uma via interior (p.
535, 6)
cuja viga mestra é a
certeza do saber (p.564).
Poderíamos julgar que
aí encontra-se o nexo desejado,
porém o que se expressa é que Sócrates não faz
obra de estadista, não
sendo atribuível a ele a “politeia”
que Platão constrói na obra, muito menos a postura do estadista
apresentada no Gorgias.
Sócrates não
participa diretamente da vida política, não obstante influenciar
politicamente os outros, e o
saber socrático é definido como
phronesis,
prudência, só tendo um objetivo, o conhecimento do bem (p. 568).
Ele não preconiza a
vida do "xenos pantacou",
o “estrangeiro por
toda parte”, que Aristipo personificava como a melhor solução no
conflito de indivíduo e comunidade (p. 575). Mas
sua adesão à vida na Cidade é refletida por uma atitude suscitada
pela situação da burguesia ática, invadida por uma multidão de
influências de todo tipo, no
seio da qual Sócrates aparece “qual Sólon da vida moral”, sendo
nesse campo da ética que ele percebe que o Estado e a sociedade
estão perturbados. (p. 512)
Não obstante a
referência a tal profusão, Jaeger noticia sua participação
juvenil no círculo de
Cimon que tipificava o
partido espartano na
aristocracia de Atenas, assim
como a sua invocação “do que há de espartano no espírito do
povo de Atenas” contra o pessimismo político da época (p. 545). Porém é na
paidéia, conforme um
novo conceito contrário
a toda mera aquisição de habilidades técnicas, que Jaeger
estabelece a contribuição de Sócrates. O feito de ter desviado a finalidade prática dos sofistas, que era
formar homens do Estado e dirigentes da vida pública, reestruturando
a conexão da cultura espiritual com a cultura moral (p.540) de
modo a elevar a Paideia ao máximo que se poderia fazer dela, sua
postulação como “destino espiritual e moral do Homem". Nesse
sentido ensinando que “O Homem, assim concebido, nasceu para a Paidéia. Este é seu
único patrimônio verdadeiro”.
(p. 571)
E como todos os
socráticos convergem nessa concepção, é razoável concordar que
deve ter sido originalmente ensinamento de Sócrates. Jaeger convém
que inúmeras citações o
poderiam ilustrar, porém contenta-se em narrar a história do
megárico Estílpon. Tendo Mégara sido conquistada por Demétrio
Poliorcete, este quis demonstrar boa vontade ao filósofo
indenizando-o do saque, solicitando
assim uma lista das coisas de que fora ele privado. Ao que Estílpon
respondeu altivamente que “A Paidéia ninguém tirou da minha
casa”. (p. 572)
Compreendemos, em
todo caso, que o
problema da definição do ético e do político em Sócrates excede
a postulação inicial de Jaeger sobre dever-se a que ele não se
dedicava pessoalmente à
política, embora formasse homens que tinham objetivos políticos, a
exemplo de Alcibíades. Envolve
algo mais, inerente ao conceito mesmo. A cisão aparece, pois, como
algo estranho ao mundo grego. Se Aristóreles é a quem se deve a
atribuição de Sócrates como pensador ético, o erro
seria considerar a ética como o oposto do político assim como nós
modernos podemos fazer desde que compreendemos a subjetividade, e
nela a esfera dos valores éticos. Na Antiguidade, os valores do
indivíduo representavam apenas a parte relativamente ao todo da
comunidade, onde se processam as relações políticas (p. 559).
Na verdade o problema é
mais complexo pelo fato de ser praticamente inexequível decidir
sobre até que ponto Sócrates não se confunde com o que lhe
atribuem Xenofonte e Platão.
Para alguns, como
Heinrich Maier, é Platão e não Sócrates quem criou a teoria das
ideias, limitando-se o
mestre de Platão a ser “o profeta da autonomia moral”. Mas para
outros, em face das enormes dificuldades dessa tese, o provável é
que em Sócrates já estava se defendendo a teoria das ideias. (p.
561)
Similarmente, o cromo
tradicional de Sócrates introdutor do conceito esbarra com a questão
de saber por que seu discípulo Antístenes se torna
em seguida um mestre da simples ética e parênese, mas
limitar Sócrates a estas últimas torna inexplicável a carreira do
seu discípulo Platão. (p.
562)
Ao ver de Jaeger, tudo
isso apenas contribui para afirmar que Sócrates se esforçou para
“penetrar na essência da moral por meio da força do logos”, e,
como vimos, ele considera que não haveria sentido na profissão de
fé socrática na virtude
e sanidade política sem sua convicção inabalável do saber como do
Bem, mesmo que em termos do que se deve ter por objetivo desde que se
o compreenda como “o” objetivo da ética e da política.
Não
portanto, como algo adquirido, mas como
objetivo, esse telos
em que desaguam todos os caminhos das aspirações humanas. Uma
outra figuração simbólica do bem é
o alvo (skopos) ao qual
se mira
a seta, acertando ou não. Em
todo caso, o Bem é um
movimento orientado, que “empresta
à vida um outro rosto”, o objetivo voluntário do Bem “torna-se
unidade interna, ganha forma e tensão. O Homem vive continuamente em
guarda "com os olhos no alvo'”, conforme as palavras de Platão.
(p. 570)
Ao que parece, o trecho decisivo no exame de Sócrates, quanto a este
outro problema que é a exegese de Platão, é aquele em que Jaeger
reflete sobre a origem do conflito do Estado com a filosofia, tal
como se expressou no processo contra Sócrates: “No fundo, o
conflito com o Estado nasce para a filosofia e para a ciência, a
partir do momento em que a investigação se exerce sobre a natureza
das 'coisas humanas', isto é, sobre o problema do Estado e da
aretê...”. Isto é, quando a investigação decorre dessa questão
“como razão normativa”. (p. 573)
Nós o vemos, é forçoso que o Estado o interprete como intuito de
substituí-lo no mister de formador das leis de conduta. Porém,
conforme Jaeger, “Ao por nas mãos da filosofia o cetro do seu
Estado ideal, Platão compreendeu e procurou eliminar a necessidade
deste conflito entre o Estado, no qual reside o poder, e o filósofo,
que investiga a norma suprema do comportamento.”
Ora, transpõe-se assim evidentemente o limite do Bem e do saber que
o faculta, como objetivo, o que a Antiguidade na figura de Sócrates
pôde alcançar em termos de ideia reguladora, o que só a
modernidade com Kant realmente expressou. Mas parece irônico que no
momento em que a expressão se realiza, em vez da separação total
de Estado e filosofia, na autonomização da ciência e laicização
do Estado, ocorre a emergência pós-kantiana das ciências humanas
que se tornam o suporte legitimável das decisões do Estado. Na
Antiguidade, Platão o prefigura ao cruzar a fronteira e enunciar
decisivamente as normas de um Estado ideal, não só definidas pelo
saber filosófico, mas encarnando o poder monárquico a
personificação real da filosofia.
Já tratando do platonismo, Jaeger justifica a sua interpretação
dele como uma filosofia política, que é também a interpretação de Adorno e Horkheimer para declararem-se quanto a isso platônicos, e uma verdadeira antropologia
cultural: “Sócrates apontara a meta e estabelecera a norma para o
conhecimento do bem. Platão procura encontrar o caminho que conduz a
essa meta, ao colocar o problema da essência do saber. Passando
pelo fogo purificador da ignorância socrática, sente-se capaz de
chegar mais longe que ela, ao conhecimento do valor absoluto que
Sócrates buscara, e de por meio dele restituir à ciência e à vida
a unidade perdida”.
Também revelador dessa justificativa é a
sentença: “A história da paidéia, encarada como a morfologia
genética das relações entre o homem e a polis, é o fundo
filosófico indispensável no qual se deve projetar a compreensão da
obra platônica”, na medida que uma explicação do conceito do
político que anima o objetivo e o conteúdo essencial da filosofia
platônica, Jaeger considera que só pode se desvelar através dessa
história. (p. 590) Sobretudo através do ponto de inflexão, nela,
que representa a transformação socrática, a paidéia tornando-se a
finalidade do humano.
Ora, como vimos igualmente, a história da Paideia até aí já havia
tido o seu sentido encontrado e definido na configuração da Polis
espartana, paralelamente à definição da monarquia como a forma pura da filosofia. Impõe-se a indagação sobre como a teoria do Estado em
Platão, que em consequência da interpretação de Jaeger demarcada
nesse trecho, deve culminar todo o encaminhamento temático em torno
dos diálogos por ele estudados na Paidéia, reflete esse sentido.
Mais uma vez repetindo que Jaeger prefixou estritamente a ligação
do platonismo como uma filosofia espartana do Estado ao longo do seu
exame da formação daquela Cidade-Estado. O problema que aí vemos é
o contraste aparente dos princípios colocados.
Todas as referências a Sparta em Jaeger, seja como fundamento de
Estado ou pela conexão intertextual Tirteu-Platão, embasam uma
concepção aristocrática de vida, onde pois a igualdade como
conceito político não existe - ao mesmo tempo que como vimos, Sparta teria praticado uma cidadania onde todos eram por igual aristocratas. Se Sparta comunizou o ideal da
nobreza homérida, foi apenas porque como grupo subjugou um outro, o
messênio escravizado, desigualdade na qual Tirteu baseou
explicitadamente o seu discurso construído de superioridade racial
que funcionava como a instrução moral e política do Estado
espartano. E, independente disso, mesmo no interior do grupo dominante o
regime instituía hierarquia rígida, com nada que pudesse se
assemelhar a uma democracia.
Aqui
é como se Nietzsche na sua oposição passional do Senhor contra o
escravo, pudesse ter lido a
Paideia de Jaeger
para
reproduzir o ideal espartano da
hierarquia social contra o liberalismo político, aristocracia contra
democracia, ou
como se Jaeger houvesse grecizado Nietzsche radicalmente, e
de um modo mais que irônico, efetivamente exegético, o tivesse
tratado pelo nome de Platão.
O que resulta podermos reconfigurar
como trajeto nietzschiano do simbolismo ao pós-estruturalismo, o
período histórico de
um platonismo dissimulado ou não, que
portanto compreensivelmente culmina na ditadura imperialista da
técnica planetarizada como dominação info-midiática na atualidade.
A
oposição senhor/escravo define um inconsciente geopolítico do
imperialismo, ele próprio dissimulado como meta-relato do progresso
social ou modernidade.
Na verdade, ulterior àquelas contradições, naquele ponto em que Jaeger
baseou em Platão a dicotomia das formas estatais fundamentais, como
o militarista dórico e o jurídico jônico, (p. 107, 108) reside um
efeito de discurso. Na pressão do contraste opositivo que mapeia
como um desejo a estrutura profunda da Paidéia, a introdução do
estudo sobre Sparta, cuja centralidade no imenso texto é aí
marcada, como constatamos, é feita como de um contrário num par.
Após o que, o estudo minucioso de Solon, como da educação no Ethos
da lei democrática, é exemplar, porém não atrapalha a linha
principal das reflexões, sobretudo quando devem abarcar a guerra do
Peloponeso e o trânsito ao século IV, a qual está em total
contradição com o fundamento dicotômico.
Nessa linha, a
demonstração histórica da montagem da democracia, como ressaltei,
é uma longa redução ao absurdo argumentativa, construída com os
fatos do fracasso na guerra mas também com interpretações da
cultura conforme a inflexão da dramaturgia até o extremo
individualismo de Eurípides, de modo que a inferência no interior
da Paideia deve fechar, como um mecanismo na mente do leitor,
qualquer saída para um dos opostos no pressuposto par, restando
apenas de socialmente exequível o modelo estatal espartano.
O regime
estatal democrático é aparência de sociedade, conforme Jaeger, mas de fato é o
contrário da sociedade possível, conduzindo à anarquia e ao caos
de átomos sociais individualizados e imiscíveis, em confronto
permanente, tanto entre si como com uma lei incapaz de representá-los
na sua perigosa e não sublimada diferença. Aqui seria oportuno indagar se essa opinião é idiossincrática a Jaeger, ou reflete um senso comum da época culturalista europeia.
Na democracia, pois, a
educação não é uma, de fato e de direito. A unidade sendo o que fundamenta a cultura como sistema na metodologia culturalista. Como um dogma de
liberdade irrestrita, segundo Jaeger, a educação na democracia mostra-se incapaz de fornecer aos sujeitos os
limites de conteúdo que definem para ele os seus deveres socialmente
estabelecidos, assim como seu papel e lugar num cosmos político.
Por outro lado, se o trecho sobre Sócrates e o peso considerável da
extensíssima parte reservada ao estudo do platonismo na Paidéia,
deveriam ser o corolário dessa demonstração por reductio ad
absurdo da liberdade ao caos como da coesão à anomia, o que introduz a visada de método jaegeriano é uma
transformação da paidéia,
operada em Sócrates, não uma continuidade perfeita. Mesmo se é
Platão quem eleva a nova percepção da paideia
ao estatuto de
ciência política, fica em suspenso o verdadeiro referencial
definido como fonte do platonismo, a paidéia de Tirteu ou a de
Sócrates. Podemos notar como ambos são antitéticos por esse curioso intercurso aristofânico da revolta do popular ateniense contra a erudição socrática, enquanto de fato era Sparta a iletrada.
Mesmo que a intenção fosse julgar o platonismo como
filosofia política, e produzindo-se na junção de ambos, o problema
só se manifestaria com mais força. O contraste pois é total entre,
por um lado,
o particularismo
espartano
do grupo dominante como ethos do respeito pátrio a partir de sua
definição como elite da força, com
a força sendo o valor
unitário da educação militarista
patriótica; e,
por outro lado, o
universalismo da paidéia socrática em termos de telos existencial do
ser humano, na qual a
realização é apenas o ter-se atualizado das virtualidades inatas
das almas particulares,
realização que a
define, e ao educador, como exclusivo “serviço de Deus”. (p.
528, 577)
A cena está assim montada.
Qualquer razoável conhecedor da história da filosofia poderia
inferir o resultado
hegeliano, se o problema é posto com tanta clareza, como da antítese
histórica do universal e do particular. Porém
a lição de Jaeger é de grande alcance, pois o que ilustra é
na verdade como Hegel estava
sendo ao mesmo tempo ultrapassado e conservado na
era do funcionalismo.
Jaeger o expressa sem
sombra de dúvida, pelo
que podemos apreender como de
fato eivada
de consequências a sua
aparentemente
ligeira referência à total ultrapassagem do
“idealismo alemão”
metafísico
no período de
emergência do neokantismo (p.
585).
Um resultado estritamente da
conciliação de particular e universal, não poderia definir
qualquer atualidade do platonismo, como de qualquer sistemática
conceitual anterior. O
particular seria caso do universal num sentido bem preciso, sendo um
momento histórico dele, ultrapassado necessariamente pela lei
evolutiva que o reconceitua,
sendo essa transformação conceitual a “modernidade”, em sentido
adjetivo, na História. Mas
o que Jaeger referencia de Hegel, nesse ponto em
que se trata de entender o trânsito de Sócrates a Platão, pela
atribuição exclusivamente
a este da problemática do Estado, é que a mesma superação do
indivíduo abstrato na história expressa a filosofia de Hegel, porém
assim a ela contrapondo-se
a evidência de que sua verdade já estava escrita na Antiguidade
pelo platonismo: “Foi
nem mais nem menos que Hegel quem negou à razão subjetiva o direito
de criticar a moral do Estado, que é por si a fonte e a concreta
razão de ser de toda a moral sobre a Terra. Eis um pensamento
totalmente inspirado na Antiguidade e que nos ajuda a compreender a
atitude do Estado ateniense para com Sócrates.” (p. 574) Heidegger também endereçou a crítica a Hegel por ele conceber a modernidade como totalmente inantecipada pelo gregos, afirmando inversamente que os gregos eram o que restava por pensar na modernidade.
O que os
atenienses não comprenderam, segundo Jaeger, foi apenas que Sócrates não
desprezava, como “um iluminado e um exaltado”, o “Estado tal
como era”, sem militar factualmente pelo “Estado como devia
ser”. Assim, conclui
Jaeger, “A esta luz, é o Estado decadente”, como
de Atenas na
época de Sócrates,
“que aparece como o verdadeiro apóstata e Sócrates já não é um
simples representante da 'razão subjetiva', mas antes o servo de
Deus”, conforme Platão na Apologia 30 A, “o único que pisa
terreno firme em meio a uma época vacilante”.
Mas como se faz o trânsito da reação a um estado de coisas
politicamente corrompido, e a transformação do homem numa
encarnação endeusada da verdade, assim
situando a esta última contra o direito racionalmente
constituído, isto
é, pelos procedimentos que reúnem as instituições da negociação
pública - para assim considerar a razão a personificação deificante em si mesma?
É, pois, o trânsito
da noção socrática de serviço pessoal de Deus à concepção platônica da "Politeia" – o termo pelo qual se traduz a "República" de Platão –
de que se trata na
Paideia. Inversamente
a tratar Sócrates como o hegeliano herói transgressor do seu tempo,
a favor de um tempo que virá.
As relações de Platão com a ciência grega, especialmente as matemáticas e a medicina, e o papel que ela tem na Paideia, Jaeger tratou acuradamente. A propósito, ver meu blog "idealização e ciência na contemporaneidade". Porém como já constatamos, por mais que tenha registrado a importância da ciência na sua avaliação do pensamento platônico, atribuiu ao problema político o lugar central.
A
Grécia que Jaeger considerou caduca como ideal de Estado no grande desfecho da
Paideia, não deixa
dúvida, para quem de fato a leu. É
apenas a
efetividade cindida de uma Grécia fascinada pelo processo
dissolvente da Polis
ateniense. Já a Grécia como manancial de um ideal de Educação apto a modelar a verdadeira aristocracia espiritual, que ele julgou exemplificada na unidade militarista do ethos espartano, é o que Jaeger pretendeu que os leitores da Paideia compreendessem como a mensagem do seu platonismo.
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